- Tem picolé de molango?
Virei em direção à voz doce e suave e encontrei a imagem da inocência, uma linda garotinha de uns cinco anos, negrinha, com o cabelo pixaim adornado em diversas trancinhas cheias de miçangas. O olhar ansioso pela guloseima me fitava, exigindo a resposta o quanto antes.
- Tem sim, princesinha, toma!
Enquanto a mãe me pagava, a criança tentava em vão abrir, rasgar com unhas e dentes o último empecilho para chegar ao picolé, a embalagem plástica, que insistia em ficar ali, adiando a alegria das papilas gustativas da menina. A mãe a ajudou e foram andando em direção ao campinho de areia, onde as crianças podiam se divertir sob os olhares das genitoras.
Não pude deixar de continuar a observar aquela criaturinha. Ao chegarem à pracinha de brinquedos, a menina percebeu que um guri, loirinho, de olhos claros, mais ou menos da sua idade, não tirava o olho de seu picolé. Receosa entre deixar de aproveitá-lo ao máximo e ver o menino com vontade, decidiu-se, silenciosamente, por oferecer-lhe um pedaço, levando-o rumo à boca do desconhecido novo amigo.
Eu queria, naquele momento, ter uma câmera fotográfica, ou mesmo ter o dom de pintar, desenhar, qualquer coisa de modo a gravar a cena e repassá-la ao mundo inteiro, para esse bando de cidadãos honestos, que trabalham dia e noite e voltam para o lar, o claustro diário, acompanham o telejornal e desejam a morte dos ladrões cruéis, que tiram a vida de outros semelhantes cidadãos honestos. Algo doce e sutil o suficiente para talhar uma ferida profunda no egoísmo cotidiano das pessoas. Mas a situação era por demais tenra e eu não conseguiria de forma alguma ter algum sentimento vil.
A solidariedade entre as duas crianças, tão diferentes, mas tão iguais, me tocou. Eu quis abraçá-las bem forte, como se fossem meus netos.
O garotinho sorriu, agradecido, mas antes que ele pudesse aceitar, sua mãe percebeu o que acontecia e puxou-o subitamente para o seu lado, dando-lhe uma bronca e um tapa no bumbum. Do outro lado, a menina assistia estarrecida ao acontecimento e imediatamente levou um puxão de sua mãe, querendo protegê-la do menino que queria roubar o picolé da filha - foi o que ela pensou. No solavanco, o picolé soltou-se da mão da menina e voou, girando no ar, até cair no chão de areia. As duas crianças acompanharam a queda como pai vendo o filho saltar da janela de um edifício. Os olhos de ambos se encheram de lágrimas, porém nenhum chorou de verdade.
As mães começaram a trocar ofensas, dizendo coisas feias perto das crianças, sem o menor pudor. Elas, réus inocentes de um crime cometido por advogados e promotores, ouviam assustadas, em silêncio. A menina começou a chorar, o menino olhou com pena.
Inconformado, peguei dois picolés de morango de meu carrinho e fui andando em direção a eles, esperançoso de acabar com a confusão e dar algum conforto aos pequeninos. Estes me avistaram e foram, aos poucos, engolindo o soluço. Eu, já próximo, podia sentir a sua alegria me contagiando, quando as mães, irritadas, pegaram seus respectivos filhos e tomaram caminhos opostos. As crianças ainda me olhavam, uma de cada lado, com uma expressão de quem esteve perto da glória e não a alcançou. Em seus rostos, uma tristezinha por algo que não precisava ter acontecido.
Eu parei no meio do caminho, estático, sem saber o que pensar, nem o que fazer, com dois picolés de morango derretendo em minhas mãos e escorrendo pelos cotovelos. Até alguém gritar do carrinho:
- Ô, picolezeiro, dá pra vir atender logo?