quarta-feira, 20 de outubro de 2010

sobre política e religião, em 10 minutos


Diálogo com Anita Silveira sobre a frase que retransmiti no twitter:

"RT: @fernando_takai: um dia, eu espero, religião e política estejam bem distantes."

Anita publicou sua opinião em seu blog "café com groselha":
café com groselha: sobre política e religião, em 5 minutos

Se entendi corretamente, ela parte do princípio do meio termo na relação entre política e religião: esta não deve ser determinante na primeira, contudo não deve também ser totalmente isolada. Concordo que os princípios religiosos contem em si valores morais, que são a base da legislação de qualquer país. Ou seja, indiretamente a religião pode se envolver com a política.

No entanto, Anita iguala as duas posições, chamemos os "religiosos" e os "laicos", considerando que os dois lados desejam impor seu "próprio modo de vida" à legislação. E eleva a gravidade da posição dos laicos que desejam uma Lei com "ares de 'abertura' (...) quando na verdade é tão restrita quanto a primeira".

Eu discordo deste ponto de vista. Quando os religiosos desejam que as leis da sociedade de um Estado laico sejam iguais a suas leis morais, significa que querem impor seu modo de vida aos demais, isto está claro. Isso significa, na maioria das vezes, impossibilitar que outros modos de vida sejam permitidos. A via oposta, no entanto, não cerceia: abrange. Ela permite não só que os preceitos de uma religião possam ser seguidos, mas também outros pontos de vista. À medida que libera as diversas possibilidades, permite que todos estejam dentro da lei. Cada indivíduo ou grupo social aceita as regras de uma determinada religião caso achem que a mesma lhes conduzirá ao caminho correto.

Eu considerar que a religião não deve ser misturada com política significa orientar a política para abranger a opinião de todos ou ao máximo possível de cidadãos. Se as regras de um grupo forem aplicadas a todos, haverá uma considerável parcela não atendida.

O caso de Sarkozi, citado por Anita, se pretende laicizante, mas é, na verdade, também religioso: a lei proíbe que determinado item de vestuário seja usado, seguindo o preceito de liberdade da nossa fatídica 'ética judaico-cristã-ocidental'. Mas estamos falando aqui justamente de legalizar coisas que hoje são ilegais; o que Sarkozi fez foi bloquear uma das liberdades, no caminho oposto que desejo. Da mesma forma, não acho justo que em alguns países as mulheres sejam obrigadas a usar um véu. Elas deveriam escolher se devem ou não usar, baseadas em sua religião e em seus próprios princípios morais.

Meu ponto de vista é: as decisões devem ser baseadas em racionalidade e democracia, respeitando todos os modos de vida existentes, sem proibir os modos de vida diferentes. Coexistência de modos de vida. O fato de eu ser contra a criminalização do aborto não me faz ser a favor do aborto em si caso fosse um filho meu. O fato de eu ser a favor de liberação do casamento gay não me faz querer ser gay ou transformar todo mundo em gay. O fato de eu ser a favor da legalização de drogas leves não torna obrigatório o uso de maconha nos incensos das igrejas. O contrário sim: a criminalização destes aspectos impede diversos modos de vida particulares que não sejam o modo de vida de determinadas religiões. Imagine se quiséssemos proibir os cultos barulhentos de alguns evangélicos porque perturbam a tranquilidade tanto quando bares, ou a pregação de Testemunhas de Jeová na porta de nossa casa porque é invasão de privacidade ou coersão ideológica, ou as oferendas do candomblé ao mar, porque isso pode causar poluição das águas. Cada um desses religiosos ficaria coibido de sua fé, ao passo que grande parte da sociedade poderia sentir-se melhor atendida com as proibições. Mas é possível a convivência de todos sem essas proibições. Nos polêmicos temas anteriores, há diversas relações que envolvem saúde pública, direitos humanos e segurança pública que são deixados de lado devido a dogmas religiosos. Esses dogmas é que impedem a livre discussão de tabus e o debate aberto e que levam a uma aristocracia disfarçada de democracia.

Mesmo assim, se os candidatos realmente tivessem por princípios alguma posição, seria mais compreensível. O que considero mais grave nisso tudo e que me leva a querer separar política e religião, é que eles lançam mão desses tabus religiosos para ganhar votos. Todo o resto - plano de governo, propostas para saúde e educação etc. - fica em segundo plano. É a pior das consequências.

sábado, 26 de junho de 2010

A day in life


Gigante e eloquente, seguia desfilando o elefante pela avenida semi-pavimentada, cheia de buracos, remendos, com lobadas e depressões aqui e ali. Defecava como sempre um esterco de odor agradável a muitos olfatos, tórpidos de deleite ou êxtase, quando esguichou sua água trombática no gnu que se esforçava em manter-se aparte do espetáculo. Hienas e avestruzes deleitavam-se ululantes em torno do proboscídeo.

Mabecos que rondavam por perto uivaram em reprovação, despertando a atenção de lêmures esticados sobre as cabeças das girafas. Os pequenos bichos, saturados daquela apelativa e alienante ostentação de marfins, desceram rapidamente pelos pescoços longínquos e atacaram massivamente coquinhos em direção a uma das patas do elefante, gritando à plateia que olhasse por um instante ao azul do céu. Os mini-projéteis causaram-lhe um perceptível e indolor arranhão na pele cascuda. O público continuou estupefato com a afetada riqueza visual do mamífero maior. O elefante decidiu interromper o jorro nasal para utilizá-lo em momento mais oportuno.

E seguiu sua pomposa parada festiva, para satisfação de babuínos, gibões e gorilas, cercado de flamingos, chacais e guepardos.

(Os lêmures abrigaram-se novamente de focinhos empinados em suas guaritas, enquanto as hienas esgoelavam-se em risadas sabendo que mais tarde a carniça podre dos espectadores estaria mais uma vez disponível.)


sábado, 19 de junho de 2010

Radical

Numa coluna da casa
Há a raiz de uma árvore
      Podada

A cada estação cresce a árvore
E mais uma vez é
      Podada

Abaixo da casa
Há uma fundação
Perfurando o solo
A erguer a construção

A raiz disputa lugar com a fundação
A raiz - orgânica - fere a fundação
Acha nutrientes no solo
Para crescer a árvore

Pela coluna da casa
Desce uma canaleta
Na chuva jorra água
Escoa pela ardósia
E some pelo ralo

Um pouco da água não desaparece no ralo
se espalha pela ardósia - prévio solo rígido - e na fissura do piso, em torno do caule
Se esvai
pela
fundação
atinge
o
solo

A água de cima
junta-se
ao solo de baixo
Motivam a raiz a alimentar a planta
E fomentam a guerra - raiz contra fundação

A raiz luta contra a fundação da casa
      Vence

Vitorioso, cresce o caule
Com tímidos galhos
Folhoso verdejante
Vitorioso, logo
      Podado

O sol ilumina a casa e as folhas
A casa estagnada não progride
As folhas iluminadas alimentam
A planta que progride
      Podada

O que vem do alto e do fundo
É pela planta
O que fica no meio, estático
É pelo homem e para ele
Não para a humanidade

A raiz é fundação da árvore
Ainda projetada, inexistente
Abstrata e desarmada
O concreto armado é fundação da casa

Raiz vence concreto
Árvore não vence casa

      Raiz, vens de baixo
      Eu, coluna, ergo-me acima
            orior supra ergo sum
      Não queira deslocar-me
      Oprimo-te em prol da casa

Vitorioso homem sobre natureza
Se acaba o homem, perde a casa
      

quarta-feira, 24 de março de 2010

Póstumo

publicado n'A Patada em 25 de fevereiro de 2004

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O que mais machuca perante a morte é a triste e desesperadora sensação de não ser mais possível matar as saudades do ente querido que se foi.

................

Ah, se eu pudesse
uma última vez estar contigo
Bater um papo, jogar conversa fora
E saber como anda a tua vida

Ah, sim, eu queria
Dar-te um último grande abraço
E aproveitar mais um momento
Antes de tua precoce partida

Assim, hoje eu estaria
Muito menos desolado e arrependido
Por não acreditar que esses
Teus últimos dias seriam

A Si Deus acolhe
Todas as almas bondosas como a tua
E tão evidente chega a parecer
O teu papel entre nós

Há, sim, a certeza
De que ajudaste a salvar uma vida
Cuja difícil missão será, sozinha
Fazer crescer vosso jovem fruto

A simples passagem tua
Por nossas pequenas existências
Ficará marcada em nossas memórias
Como ferida aberta pelo destino

Assino, com muito carinho
Essa despretensiosa homenagem
Com uma lágrima no rosto
E uma imensa saudade no coração

E que Deus abençoe a todos nós.

Em memória de Celso Mendes dos Santos

Todo sofrimento tem seu fim

publicado n'A Patada em 2 de agosto de 2004

Ramstein está acostumado a ver rostos desesperados e aliviados. Diariamente, várias pessoas passam por seu escritório.

Atrás de grossas lentes, seus curiosos e levemente vesgos olhos perseguem os menores movimentos dos visitantes. A maioria chega cumprimentando-o com um solene "Bom dia!" e, a princípio, sente-se desconfortável em revelar seu real intuito em encontrá-lo, citando então pormenores da vida ou comentando o tempo. Às vezes, alguns vão até ali simplesmente para conversar e ver como anda a vida. Porém, Ramstein rapidamente percebe os casos em que a pressa da saudação e a aleatoriedade do assuntos escondem uma vontade imensa de se livrarem do que há de mais podre dentro deles. E ele tem total consciência disso.

Em geral, antes mesmo que Ramstein delicada e sutilmente peça para a pessoa seguir em frente e chegar ao motivo da visita, ela já se revela e desabafa seu sofrimento. Com bom humor, ele procura diminuir o constrangimento alheio, muitas vezes com sucesso.

Entretanto, ocasionamente o visitante vê-se obrigado a se conter e nem encontra palavras para expressar sua dor. Ramstein compreende a situação e procura abrir-lhe a porta para a solução. Muitos não percebem que há sempre, na verdade, um outro caminho, e que tal penitência não é necessária. É nesses casos que Ramstein fica mais satifeito em poder ajudar.

Depois de cada sessão, é evidente a diferença no semblante de quem passa por lá. Ao entrarem pelo corredor, Ramstein vê a tensão e mesmo o martírio estampado nas faces. Eles chegam, fecham a porta, sentam-se, respiram bem fundo, soltam-se, enquanto todo o inimaginável passa-lhes pela mente. Suspiros e gemidos permeiam o processo de libertação. Enfim, limpam-se da sujeira impregnada até a alma e despedem-se, sorridentes, satisfeitos e mais tranqüilos, para voltarem novamente no dia seguinte.

E Ramstein sorri. Sonhava em ser psiquiatra, mas trabalha na secretaria do laboratório de uma mineradora, onde ficam os dois únicos banheiros limpos do local.


Da desilusão

escrito em 2000, publicado n'A Patada em 23 de novembro de 2003

Fim de tudo, término do mundo
Vontade de sumir, desejo de desaparecer.

Afrodite enfurecera, virara Medusa,
Mirou o peito; pobre coração
Inocente, correspondeu ao olhar:
Petrificou-se.

Prefere agora a neve ao raio de sol
O breu à vela
O luto ao sorriso.

De nada serve chorar
Se adiantasse, de lágrimas seriam feitos
Os rios e lagos,
Somente chuva haveria, pranto dos céus.

Lamentos de santos e deuses
Soluços de anjos e ninfas
Só alegradas pelos acordes
Dos fios de mui poderosa harpa
Tocando envolventes baladas
Inebriando todos os sentidos e, aos poucos,
Lapidando novamente o imo
Flamejando-o, dando-lhe pulso, energia restauradora.

Mais uma vez a esperança,
A crença numa eventual generosidade do destino
Esse mesmo, de espírito ladino
Serelepe feito menino
Traiçoeiro tal qual a ação de um lupino
Deixando uma alma à deriva
Num mundo lupino, menino, ladino
Sozinha...