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sábado, 26 de junho de 2010

A day in life


Gigante e eloquente, seguia desfilando o elefante pela avenida semi-pavimentada, cheia de buracos, remendos, com lobadas e depressões aqui e ali. Defecava como sempre um esterco de odor agradável a muitos olfatos, tórpidos de deleite ou êxtase, quando esguichou sua água trombática no gnu que se esforçava em manter-se aparte do espetáculo. Hienas e avestruzes deleitavam-se ululantes em torno do proboscídeo.

Mabecos que rondavam por perto uivaram em reprovação, despertando a atenção de lêmures esticados sobre as cabeças das girafas. Os pequenos bichos, saturados daquela apelativa e alienante ostentação de marfins, desceram rapidamente pelos pescoços longínquos e atacaram massivamente coquinhos em direção a uma das patas do elefante, gritando à plateia que olhasse por um instante ao azul do céu. Os mini-projéteis causaram-lhe um perceptível e indolor arranhão na pele cascuda. O público continuou estupefato com a afetada riqueza visual do mamífero maior. O elefante decidiu interromper o jorro nasal para utilizá-lo em momento mais oportuno.

E seguiu sua pomposa parada festiva, para satisfação de babuínos, gibões e gorilas, cercado de flamingos, chacais e guepardos.

(Os lêmures abrigaram-se novamente de focinhos empinados em suas guaritas, enquanto as hienas esgoelavam-se em risadas sabendo que mais tarde a carniça podre dos espectadores estaria mais uma vez disponível.)


quarta-feira, 24 de março de 2010

Todo sofrimento tem seu fim

publicado n'A Patada em 2 de agosto de 2004

Ramstein está acostumado a ver rostos desesperados e aliviados. Diariamente, várias pessoas passam por seu escritório.

Atrás de grossas lentes, seus curiosos e levemente vesgos olhos perseguem os menores movimentos dos visitantes. A maioria chega cumprimentando-o com um solene "Bom dia!" e, a princípio, sente-se desconfortável em revelar seu real intuito em encontrá-lo, citando então pormenores da vida ou comentando o tempo. Às vezes, alguns vão até ali simplesmente para conversar e ver como anda a vida. Porém, Ramstein rapidamente percebe os casos em que a pressa da saudação e a aleatoriedade do assuntos escondem uma vontade imensa de se livrarem do que há de mais podre dentro deles. E ele tem total consciência disso.

Em geral, antes mesmo que Ramstein delicada e sutilmente peça para a pessoa seguir em frente e chegar ao motivo da visita, ela já se revela e desabafa seu sofrimento. Com bom humor, ele procura diminuir o constrangimento alheio, muitas vezes com sucesso.

Entretanto, ocasionamente o visitante vê-se obrigado a se conter e nem encontra palavras para expressar sua dor. Ramstein compreende a situação e procura abrir-lhe a porta para a solução. Muitos não percebem que há sempre, na verdade, um outro caminho, e que tal penitência não é necessária. É nesses casos que Ramstein fica mais satifeito em poder ajudar.

Depois de cada sessão, é evidente a diferença no semblante de quem passa por lá. Ao entrarem pelo corredor, Ramstein vê a tensão e mesmo o martírio estampado nas faces. Eles chegam, fecham a porta, sentam-se, respiram bem fundo, soltam-se, enquanto todo o inimaginável passa-lhes pela mente. Suspiros e gemidos permeiam o processo de libertação. Enfim, limpam-se da sujeira impregnada até a alma e despedem-se, sorridentes, satisfeitos e mais tranqüilos, para voltarem novamente no dia seguinte.

E Ramstein sorri. Sonhava em ser psiquiatra, mas trabalha na secretaria do laboratório de uma mineradora, onde ficam os dois únicos banheiros limpos do local.


sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Descrença

publicado n'A Patada em 21 de novembro de 2003


Com tanta desgraça no mundo, às 14h16 do dia 18 de novembro Teófilo parou de acreditar em Deus.

A partir de então, Teófilo deixou de escrever o referido nome com letra maiúscula. Passou também a usar artigo indefinido. Se na mitologia grega havia vários deuses, o mundo moderno não seria diferente, a não ser pelo fato de existirem mais religiões. Teófilo percebeu que o motivo dos maiores conflitos era simplesmente a crença em um deus. Um ser abstrato, dono da verdade, suprapoderoso. Se tolerante e possuidor de bondade infinita, não conseguia impedir seus súditos de se matarem. Quando exclusivista, não permitia a existência de outras crenças. E quando indiferente às demais religiões, não podia salvar seus seguidores. Sendo assim, Teófilo concluiu que não era possível existir um deus. Nenhum.

Às 13h20 desse dia, Teófilo soube de mais uma série de atentados suicidas, dessa vez na Turquia. Todo mundo perdeu a noção no berço das civilizações. Os motoristas-bomba esperavam os religiosos inimigos reunirem-se na hora da oração e explodiam-nos. Teófilo só ficaria mais estupefato se soubesse de um pedófilo que se trancasse numa creche numa quarta-feira à tarde.
No mesmo dia, às 13h26, o chefe de Teófilo o chamou para conversar. Explicou que a cultura da empresa mudara, mas que Teófilo não havia conseguido se adaptar. Mesmo porque ninguém avisara Teófilo de mudança alguma. Às 13h55 Teófilo apertou o botão descendente do elevador, sem se despedir de ninguém.

Às 20h34 de 16 de novembro Teófilo assistia estarrecido a uma notícia na televisão sobre um casal de namorados assassinados por um garoto crudelíssimo. Não fosse a brutalidade do crime, ainda colocariam a culpa nos próprios jovens, por não avisarem seus pais aonde iriam de verdade. Teófilo lembrou-se das 18h56 de uma sexta-feira, uns dez anos antes, quando consolava sua paixão depois uma briga dos sogros e decidiram fugir. Correram para uma praia deserta distante e lá Teófilo teria os momentos mais mágicos da sua vida, até resolverem voltar, às 6h12 do dia seguinte. Porque a garota estava com medo de cobras.

Às 19h13 de 19 de novembro Teófilo foi beijar sua noiva e ela desviou o rosto. Precisavam conversar. Teófilo ouviu que era um dos caras mais bacanas que ela conhecera, mas a magia acabara e o brilho de Teófilo ofuscara-se. Às 22h22 uma lágrima caiu do olho esquerdo de Teófilo, enquanto ouvia uma canção antiga e bebia a quinta cerveja no sofá de casa, ao lado do cachorro.

No dia 26 de novembro, ao sair de casa para ir à banca, às 10h48, um mendigo parou Teófilo na rua e pediu-lhe umas moedas. Teófilo só tinha o dinheiro para o jornal, mas resolveu entregar ao homem roto. Teófilo estava mal, mas aquela alma precisava ainda mais de ajuda.

-Deus lhe pague!

Teófilo sorriu da fiel inocência do mendigo e foi caminhar pelo bairro.

Às 10h57 Teófilo esbarrou numa moça de óculos e cabelos negros amarrados, com uma porção de papéis nas mãos, que caíram na calçada. Teófilo ajudou-a a recolher tudo e seus olhares se cruzaram. Teófilo tentou pensar em algo gentil e fatal para dizer, mas achou que não era um bom momento e simplesmente pediu desculpas. A moça sorriu, desculpou e quis Teófilo. Teófilo xingou-se por ser tão desastrado e seguiu seu caminho incerto.

Às 4h08 desse mesmo dia a gráfica imprimia na terceira página do jornal diário uma oferta de emprego para o perfil de Teófilo, com uma remuneração um pouco mais baixa que a do trabalho anterior, porém ainda compatível com suas necessidades. Às 7h02 um pacote do jornal chegou à banca da praça e o jornaleiro foi logo cortar as amarras. Sem querer, acabou rasgando o exemplar de cima.

Andando distraído pela praça, Teófilo passou em frente à banca. Olhou as capas de revistas e as primeiras páginas dos jornais e resolveu comprar um. Às 11h26 disse ao jornaleiro que iria levar. No entanto, lembrou-se de que havia doado as moedas ao andarilho e desistiu da compra. O jornaleiro, por sua vez, lembrou-se do jornal rasgado e ofereceu-o a Teófilo. Ele o tomou, analisou e decidiu não levar, pois não era certo. Resmungou por haver entregue os trocados ao mendigo.

Ao voltar para casa, Teófilo sentiu-se sozinho e teve saudades da mãe, que não via havia anos. Às 12h01, ao chegar à sua porta, o telefone tocava. Apressou-se, mas o telefone parou antes que Teófilo o alcançasse. Aproveitando o aparelho na mão, procurou o número de sua mãe e discou-o. Estava ocupado. Reclamou que ela ainda só ficava pendurada no telefone e não tentou novamente. Às 12h03, a mãe de Teófilo devolveu o telefone ao gancho e desistiu de procurar seu filho.

Depois desse momento, as coincidências deixaram de acontecer em sua vida. E assim continuou ele em sua existência, até seu último suspiro, sozinho, num quarto escuro e sujo, em uma hora qualquer de uma noite fria de chuva.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Só não sabe quem não quer

E, triunfantes, bradaram as palmeiras imperiais: "De agora em diante, nenhum ser vivo nesta Terra padecerá da escuridão; o sol, nosso grande astro, nascerá para todos. É injusto que somente as copas de grandes árvores, os vastos gramados e os animais que se movimentam tenham seu quinhão de calor e luz. Todos terão acesso a essa dádiva divina, por mais tempo cada dia, por mais dias o ano inteiro."

Bichos, plantas e algas regozijaram-se ante a promessa da distribuição igualitária da riqueza maior, o desfecho feliz para todo um bioma. O sol preocupou-se levemente, mas entendeu que era seu dever. Gramíneas soturnas, sem reação, deixaram-se aquecer, até ressecarem. Musgos tornaram-se macios tapetes secos. Damas-da-noite cheiravam a mato decomposto. Minhocas confundiam-se ao feno do terreno. Sapos descoaxavam e corujas chacoalhavam trépidas na aerodinâmica dos besouros.

Os morcegos, sempre indiferentes e marginais, aproveitaram as novas frequentes visitas suculentas às cavernas e não mais precisaram externar-se. Nunca fizeram questão de ver o nitidamente claro e belo mundo tropical paradisíaco que reinava - louvado seja Deus - em todo aquele mundo igualitário e radiante.


quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Aparte

Foram apresentados. Tiveram ali seu primeiro simpósio em meio aos convivas. Ele convidou-a à dança. Ela superou a recusa instintiva e cedeu. Os pés embriagados entraram em compasso e desencadearam o toque primogênito dos lábios e das papilas. Ele avançou, ela recuou.

Trocaram olhares, sorrisos e contatos. No enlace seguinte, o encaixe perfeitamente complementar, o suor da satisfação mútua e a percepção de que o intento não seria em vão. Ele a procurava, ela deixava-se encontrar. Descobriram interesses em comum e isso os tornava mais íntimos.

Ele mostrou-lhe a incomum hibridez de seu mundo múltiplo e ela acolheu-o dengosamente em seu lar aconchegante. Concederam reciprocamente os vistos de livre passagem pela fronteira entre suas vidas. Estradas longas de asfalto e de terra, com destinos certos ou nem tanto. Até que ele tomou para si só a direção. Na busca por novos caminhos, caía sempre nos mesmos. A neblina de vias conhecidas e previsíveis embaralhava suas vistas e não o deixavam enxergar além. A melodia soava monótona, de um tom rosa cujo aroma evitava aspirar para não deixar-se envolver.

Ele ávido por novidade, ela desejosa de atenção, por mínima que fosse. No vácuo do sentimento esgotado surgiu um degradante campo magnético: quanto mais ela esforçava-se em reaproximar-se, mais levianamente reagia ele com subterfúgios. Ela o chamava para seu cotidiano e ele fugia para imprevistos impulsivos de devaneios coletivos. Ocultava e assim alimentava seu fastio. Mesmo que sentisse, ela julgaria inverossímil. Com involuntária displicência, manteve-se discreta e paciente. Semi-inconsciente da alienação, palestrava segurando com dedos fortes a mão que sorrateiramente esgueirava-se; confabulava procurando o respaldo de um olhar que, desfocado, esvaía-se.

Sufocado pela inércia da dissimulação mal representada, veio final e subitamente à tona com a implacável e inevitável sinceridade. Acumulou coragem para superar qualquer inação frente ao sofrimento tão simultaneamente alheio e próprio. Rudes palavras em prol do esclarecimento e da resignação para um futuro menos amargo. Ele, aparentemente impassível e internamente agoniado; ela, interrogando com lágrimas a desditosa notícia.

Dois dias para recuperar o fôlego e uma nova conversa para consumar o infortúnio de um crime sem culpados nem réus. E assim a humanidade segue acumulando mais um caso em seu ocaso. O aborto, involuntário ou não: a sutil morte prematura do embrião de um amor desconstruído.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Picolé de morango

publicado n'A Patada em 21 de janeiro de 2004

Eu estava no parque, ao lado de meu carrinho de picolé, contemplando uma rara tarde ensolarada de céu limpo. Um daqueles dias em que dá vontade de ir à praia, sentar à sombra de um quiosque, apreciar uma cervejinha bem gelada, soprar a nuca suada da esposa, só pra ela se Justificararrepiar e a gente dar risada.

- Tem picolé de molango?

Virei em direção à voz doce e suave e encontrei a imagem da inocência, uma linda garotinha de uns cinco anos, negrinha, com o cabelo pixaim adornado em diversas trancinhas cheias de miçangas. O olhar ansioso pela guloseima me fitava, exigindo a resposta o quanto antes.

- Tem sim, princesinha, toma!

Enquanto a mãe me pagava, a criança tentava em vão abrir, rasgar com unhas e dentes o último empecilho para chegar ao picolé, a embalagem plástica, que insistia em ficar ali, adiando a alegria das papilas gustativas da menina. A mãe a ajudou e foram andando em direção ao campinho de areia, onde as crianças podiam se divertir sob os olhares das genitoras.

Não pude deixar de continuar a observar aquela criaturinha. Ao chegarem à pracinha de brinquedos, a menina percebeu que um guri, loirinho, de olhos claros, mais ou menos da sua idade, não tirava o olho de seu picolé. Receosa entre deixar de aproveitá-lo ao máximo e ver o menino com vontade, decidiu-se, silenciosamente, por oferecer-lhe um pedaço, levando-o rumo à boca do desconhecido novo amigo.

Eu queria, naquele momento, ter uma câmera fotográfica, ou mesmo ter o dom de pintar, desenhar, qualquer coisa de modo a gravar a cena e repassá-la ao mundo inteiro, para esse bando de cidadãos honestos, que trabalham dia e noite e voltam para o lar, o claustro diário, acompanham o telejornal e desejam a morte dos ladrões cruéis, que tiram a vida de outros semelhantes cidadãos honestos. Algo doce e sutil o suficiente para talhar uma ferida profunda no egoísmo cotidiano das pessoas. Mas a situação era por demais tenra e eu não conseguiria de forma alguma ter algum sentimento vil.

A solidariedade entre as duas crianças, tão diferentes, mas tão iguais, me tocou. Eu quis abraçá-las bem forte, como se fossem meus netos.

O garotinho sorriu, agradecido, mas antes que ele pudesse aceitar, sua mãe percebeu o que acontecia e puxou-o subitamente para o seu lado, dando-lhe uma bronca e um tapa no bumbum. Do outro lado, a menina assistia estarrecida ao acontecimento e imediatamente levou um puxão de sua mãe, querendo protegê-la do menino que queria roubar o picolé da filha - foi o que ela pensou. No solavanco, o picolé soltou-se da mão da menina e voou, girando no ar, até cair no chão de areia. As duas crianças acompanharam a queda como pai vendo o filho saltar da janela de um edifício. Os olhos de ambos se encheram de lágrimas, porém nenhum chorou de verdade.

As mães começaram a trocar ofensas, dizendo coisas feias perto das crianças, sem o menor pudor. Elas, réus inocentes de um crime cometido por advogados e promotores, ouviam assustadas, em silêncio. A menina começou a chorar, o menino olhou com pena.

Inconformado, peguei dois picolés de morango de meu carrinho e fui andando em direção a eles, esperançoso de acabar com a confusão e dar algum conforto aos pequeninos. Estes me avistaram e foram, aos poucos, engolindo o soluço. Eu, já próximo, podia sentir a sua alegria me contagiando, quando as mães, irritadas, pegaram seus respectivos filhos e tomaram caminhos opostos. As crianças ainda me olhavam, uma de cada lado, com uma expressão de quem esteve perto da glória e não a alcançou. Em seus rostos, uma tristezinha por algo que não precisava ter acontecido.

Eu parei no meio do caminho, estático, sem saber o que pensar, nem o que fazer, com dois picolés de morango derretendo em minhas mãos e escorrendo pelos cotovelos. Até alguém gritar do carrinho:

- Ô, picolezeiro, dá pra vir atender logo?

segunda-feira, 18 de maio de 2009

A revelação

publicado n'A Patada em 28 de novembro de 2003

Eu tinha uns dezesseis anos e estava a discutir com alguns amigos qual a imagem mais antiga que guardávamos em nossa memória. Um desafio e tanto.

Alguns juravam que conseguiam se lembrar de imagens de quando tinham menos de dois anos, outros se lembravam do momento em que conseguiram andar pela primeira vez. Se fosse andar de bicicleta, tudo bem, mas com as próprias pernas? Fala sério! Ninguém estava para ganhar um jogo, era só para tentar conhecer os limites da mente humana. Essas deviam ser imagens induzidas, histórias que as tias contavam de quando eram bebê e o cérebro tratava de criar toda a ambientação. Por isso, tais depoimentos foram descartados, mesmo que a contragosto dos contadores de causos.

Alguns foram mais plausíveis, lembraram de um piquenique no parque, quando ainda não tinha a estátua da fonte. Aliás, não havia nem a fonte na época. Outro conseguiu captar o momento em que ganhara um autorama de Natal, achava que com cinco anos de idade. Puxa, que legal, todo garoto tinha ou queria um autorama naquela época. Uma das amigas lembrou-se da mudança para a cidade atual, quando tinha seis anos mais ou menos. Não conseguia recordar-se da situação como um todo, mas sim da malinha em que trouxera seus brinquedinhos e apetrechos de menina e de onde a colocou, num criado-mudo no canto de seu novo quarto.

Chegou então a minha vez. A minha mais antiga recordação era meio trágica. Acho que era por isso que eu me lembrava. Eu tinha um cachorrinho chamado Isnupe. Eu sabia que não se escrevia assim, aliás, eu nem sabia escrever na época da situação, mas, depois que aprendi, eu escrevia desse jeito. O Isnupe era um vira-lata, mas eu não gostava de que o chamassem assim, pois ele era muito leal e inteligente.

Um dia, eu estava andando numa avenida perto da minha casa, com o Isnupe amarrado numa correntinha. Minha mãe e uma tia dela vinham logo atrás. Não lembrava direito o motivo, mas a correia soltou-se da minha mão e o Isnupe saiu correndo para atravessar a rua. Nisso veio um ônibus e passou bem em cima do pobrezinho. Não sabia se eu tinha chorado, se tinha ficado triste, se não tinha sentido nada na hora. Não fazia idéia da minha reação. E a cena acabava ali.

Todo mundo chocado, a discussão terminou. Mudamos de assunto, falamos de outras coisas, depois assistimos a um filme na televisão e fomos embora.

Chegando em casa, encontrei minha mãe na cozinha e fui conversar com ela.

- Mãe, você se lembra do Isnupe, aquele cachorrinho que eu tinha?

- Qual, filho?

- O Isnupe, aquele cachorrinho, que era…

E expliquei-lhe toda a cena descrita para meus amigos. De repente, veio a bomba:

- Filho, você nunca teve um cachorrinho.

- Como não? Eu lembro d’ele morrer!

- Filho, preste atenção: nunca existiu um Isnupe, isso tudo que você me contou nunca aconteceu. Deve ter sido um sonho, ou algo assim.

Naquele momento, meu mundo desabou. Todo o meu pensamento racional, todos os princípios em que me baseava, tudo aquilo que eu acreditava ser o certo, já não se sustentava mais. Se a primeira imagem que eu tinha em minha memória não existia de fato, os dogmas e corolários que guiavam meus atos poderiam estar da mesma forma deturpados.

Ali, decidi realmente rever meus conceitos.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Um dia em forma de música

publicado n'A Patada em 7 de novembro de 2003

Tic-tac, tic-tac, tic-tac… Fui acordando lentamente com aquele barulhinho. De súbito, começou uma musiquinha: "Passa, tempo, tic-tac, tic-tac, passa, hora…".

Eram sete da manhã de uma quinta-feira e, enquanto eu me despertava, me perguntava de onde viria aquela música. Foi quando percebi que meu despertador criara vida: tinha olhos, boca e dançava. "Chega logo, tic-tac, tic-tac e vai-te embora…" e meus livros começaram a balançar na prateleira, os lençóis levitaram e iniciaram um balé, me perseguindo e me chamando para bailar junto.

Saí correndo do meu quarto, ainda de pijama, quando apareceu na sala a faxineira, trajando uma roupa colorida cheia de lantejoulas e fazendo uma percussão com sua vassoura, xic-xec, toc-toc, e soltou a voz, entoando uma canção bizarra.

Eu não entendia nada do que estava acontecendo ali, todas aquelas melodias, aqueles sons. Será que eu estava enlouquecendo? Fugi para a rua, mas fui impedido por um amigo, "Por que a pressa? Te acalma, enche a alma, vamos nessa!". Nisso surgiu outro amigo, cantando outra estrofe, e mais um e outro e surgiram várias pessoas numa coreografia, cantando em coro, "o seu dia… será… feliiiz!" E sumiram, todos de uma vez.

Era isso mesmo que estava acontecendo? Em menos de meia hora, três músicas coreografadas, vários personagens, alguns fantasiosos, outros caricatos. Parecia um… não, não poderia ser. Sim, só podia ser isso! Meu Deus, que horror! Eu acordei e minha vida se transformara num musical! Eu odeio musicais! Aquele monte de gente cantarolando coisas sem nexo, todas alegres e fazendo piruetas quando deveriam simplesmente andar e falar.

Entretido nesses pensamentos, fui surpreendido por secretárias e office-boys pegando-me e carregando-me até o quarto, onde o despertador já voltara à sua forma original, estático e sem boca. As pessoas vestiram-me, "corre, corre, não demora, sai do porre, vai-te embora!", me deixaram no carro, abriram o portão, balançando as mãos em sinal de despedida e o carro saiu em direção ao trabalho.

No meio de tanta bagunça e idiotice, ao menos tive um momento sozinho. Eu não conseguia acreditar que aquilo estivesse acontecendo comigo. Poderia ser com a tia Luci, que vibrara quando "Chicago", aquele filme ridículo em que o Richard Gere aparece dançando de cueca samba-canção, ganhara o Oscar de melhor filme. Mas eu, eu tenho pavor a essa idéia absurda de encher o filme de músicas chatas, que começam com um barulhinho, o cantor vai falando baixinho, aumenta o volume e, por fim, grita lerdamente a estrofe pela trocentésima vez até estourar os tímpanos da audiência.

Eis que o som do carro se ligou de repente, "... and you bird can sing..." e, sem perceber, estava eu sorrindo e acompanhando a letra, berrando pela janela do carro, sendo seguido por milhares de pássaros verdes reluzentes. Tentei parar, mas não consegui. Percebi que eu havia sido tomado pela situação e estava também fora de controle.

Já não suportava mais aquilo e não encontrei outra solução a não ser me jogar da ponte com o carro. A barreira lateral segurou o automóvel, mas, com o impacto, fui arremessado pelo pára-brisa, ao som de uma orquestra de metais, indo cair no rio.

Afundando aos poucos, atordoado, não conseguia mais escutar nada. Já não ouvia mais nenhum daqueles acordes e timbres que me aterrorizavam. Calmamente, alcancei o solo, quase inconsciente. Naquele último momento, pude sentir o significado de paz e plenitude. No dia-a-dia corrido de uma cidade grande, a gente nunca se dá conta de que dar uma pausa em tudo de vez em quando é essencial para viver bem. Talvez os mais felizes dos seres sejam os monges budistas das montanhas do Tibete, isolados de tudo e de todos. Eles, sim, sabem o que é tranqüilidade e dão o devido valor a isso. Já era tarde para eu descobri-lo. Num último momento, em silêncio, meus olhos fecharam-se vagarosamente. Era o fim dos meus dias. No entanto eu iria embora feliz.

Foi então que chegou um peixe multicolorido, acompanhado de um conjunto de conchas tocando uma sinfonia.

*Baseado numa fobia de Daniel Anand

segunda-feira, 14 de abril de 2008

O jardim errante

Orgulhava-se de ser muito equilibrado e ponderado. Toda decisão era tomada com calma, toda situação era analisada com parcimônia, toda reação continha em si precaução. Tinha claro o caminho a ser percorrido, a linha a ser seguida, os procedimentos a serem executados, passo a passo, sem tropeçar, sem pular.

E no entanto escolheu a canção errada. Quando apertou o botão, foi surgindo aos poucos um som oco e constante, repetitivo. Depois reconheceu um barulho circular de bolhas incessantes, outros tons paralelos e concorrentes indescritíveis como seu efeito e, então, um zunido a princípio inaudível e por fim certamente triunfante. No embalo sentiu-se sugado para dentro de si.

Depois de ultrapassar um pavilhão e entrar em um canal, procurou inutilmente localizar-se. Era um caminho escuro, quente e úmido, um tanto pegajoso. Quase não conseguiu desvencilhar-se da cera da parede interna. Sua bússola interna estava desnorteada, relesteada, contrasulada e prooesteada. Fosse um caranguejo, estaria andando em loop para cima, não para os lados. 

Mas por sorte o caranguejo estava na praia, enquanto por azar ele estava ali solto em sua prisão, sem conseguir sair. Ao dar um passo adiante, sentiu uma cambalhota que o jogou para trás. Grito e ouviu o eco de sua voz distorcida, rouca, volumosa e amplificada. Decidiu calar-se, antes que explodisse a si mesmo com a potência do clamor próprio. Ao encostar a mão direita na parede, um revertério no pé de cima moveu a cabeça para o centro ao contrário do meio.

Foi quando esbarrou no cabo de um martelo, que imediatamente chocou-se na bigorna estrategicamente posicionada e pensou que dessa vez não escaparia, tamanho o impacto, que o arremessou pelo meio a um vestíbulo. Até cogitou trocar de roupa, mas um olho fechado com os braços enroscados na camisa já o fariam perder-se mais ainda. Só esse simples pensamento tornou a rodopiá-lo. A tontura deixava de ser um leve susto para tornar-se surto pesado. Começava a desesperar-se.

Quando finalmente entendeu que estava desprovido de seu labirinto e justamente lá dentro inserido, sofreu uma nova e vigorosa vertigem que o derrubou e o fez cambalear para todas as bandas. A perspectiva nauseabunda de nunca mais conseguir encontrar a saída para seu próprio ouvido fez com que tentasse se enforcar no primeiro nervo que encontrou antes do seu cérebro. Infelizmente com isso atormentou-lhe uma cãibra facial que contraiu seus músculos em uma assustadora expressão de careta repugnante.

Perdido e atordoado, errou eternamente por seu pequeno e momentanemante infinito jardim.

sexta-feira, 14 de março de 2008

Da sala de espera

Resolveram enfim ignorar as mães, que galgavam árvores genealógicas e davam voltas em círculos sociais rastreando conhecidos em comum:

- Faz muito tempo?

- Dois meses.

- Isso tudo?

- É. Mas pelo menos não tive que operar. E você, futebol?

- Não, caí mesmo. Foi bem besta.

- E já vai tirar?

- Não, faz só duas semanas. Tenho que ver se vai precisar de cirurgia.

- Ai... Eu ia morrer de desespero.

- E você, o que foi?

- Acidente de moto numa descida. Com a batida fui parar longe. Eu até que machuquei pouco. O capacete partiu ao meio.

- Ai, isso é que é desespero. Pior é andar de muleta numa cidade só de colinas.

E, naquela tarde de garoa fina, continuaram conversando amenidades nada suaves que a situação sugeria, com otimistas palpites incertos baseados em casos similares de conhecidos, até ouvirem preguiçoso e longe um de seus nomes. Despediram-se com sorrisos e acenos, pois levantarem-se seria coisa complicada.

Após uma tardia consolidação do osso da perna devido a pouca ingestão de cálcio, um moroso restabelecimento pós-osteossíntese com demasiado repouso relativo e um involuntário enriquecimento colateral de vocabulário médico, voltaram a suas distantes rotinas normais.

Sentado um dia num bar com os achegados, pouco depois do reaprendizado de seus passos, esticou-se todo para comemorar a malemolência do fim de sua folga e, de supetão, levou uma pisadela na cicatriz ainda rosada na parte exposta menos morena de seu corpo. Num misto de fúria e dor lógica, porém não sentida, esbravejou impropriedades à garçonete que passava apressada por entre as mesas sobre o chão molhado de chuva. A moça desculpou-se com o imediatismo de um serviçal em um país subdesenvolvido, quando o protestante percebeu que se tratava da colega de banco da sala de espera da clínica.

O constrangimento foi rapidamente suspenso. O torpor, com a mesma intensidade a que eleva a raiva do agressor, intumesce também a amorosidade e a ternura. Perdões revertidos foram concedidos e mantiveram assim a tranqüilidade com que a tarde começara. Seguindo a primeira valiosa embriaguez e o esquecido cansaço de horas de trabalho, despediram-se, respectivamente, com exageradas palavras de carinho e repetidos agradecimentos impacientes.

Anos mais tarde, na festa de casamento de um antigo amigo, bailava um rápido arrasta-pé com sua prima, quando tropeçou num salto alto alheio e quase se projetou ao chão de cimento do salão da igreja. Na penumbra cheia de luzes em frenesi, custou-lhe reconhecê-la. Mais uma vez a satisfação de reatar uma amizade que, por falta de se regar, não brotou. Na música seguinte convidou-a para dançar, mas foi gentilmente rejeitado: estava casada e o marido era muito ciumento. Mirou-o, pareceu-lhe nada mais que um estulto mentecapto de riso fácil. Não se viram mais até o fim brusco do baile, interrompido por uma súbita tempestade. Por isso não puderam saudar a nova separação, para desapontamento de um e alívio da outra.

Passou-se um longo termo, em que sucessivas e crescentes chuvas cultivaram novas e inúmeras flores para seus buquês, seus jardins e suas praças; e, então, para seus féretros e seus túmulos, na necrópole da cidade.

E os dilúvios magníficos não cessavam. Vigoravam ininterruptamente, até a noite em que as nuvens despencaram não mais em gotas, porém em enxurradas inconseqüentes. A aluvião extrema converteu ruas em afluentes barrentos, sugando concreto, madeira e gente para o rio do vale. Tragédia sem precedentes. Uma nova Pompéia sepultada com lava hídrica fria.

Findado todo o pranto desesperado daquele céu, os primeiros raios de sol de um alvorecer sem vida iluminaram em meio à lama, ao pé de uma colina, dois restos de cadáveres amontoados. Sua renegada fíbula pôde finalmente sentir pressionar seu peso sobre a tíbia bem-quista, que, imóvel e inerte, insistia em recuar.

segunda-feira, 10 de março de 2008

Adaptação

Decidiu então enfrentar o mundo. Coisa de que tinha raiva era gente lamentando a própria desgraça, sem mesmo tentar resolver. Como se sofrer muito por si só fosse atestado de merecimento de sorte no futuro. Quem lamuriava torcia pela existência de uma lei universal da compensação. A maior parte dos problemas só existia porque ninguém resolvia. Culpa do governo, da mãe, do patrão, do destino, de Deus, de qualquer um, desde que fosse o outro e o queixoso não precisasse solucionar nada.

Ele não queria ser um desses, por isso estava certo de que conseguiria reverter a situação. Além do mais, seria temporário. Havia tantos que suplantavam dificuldades mais graves e permanentes e mantinham-se vivos. Certamente não encontrava exemplos à sua volta, porém sabia que existiam. Seria um destes vencedores, não um daqueles derrotados. Afinal, era um renitente, não um penitente.

Naturalmente duraria um período longo. Entretanto tinha confiança em que seu corpo acostumar-se-ia com o fato e, depois, condicionado, passaria a colaborar. O esforço e a coragem, esses sim, deveriam ser reconhecidos e louvados. A solidariedade alheia seria muita mais sincera e presente para os batalhadores.

Além disso, orgulhava-se deveras de sua independência. Optara por esse modo de vida, responsável por si mesmo e por mais ninguém, sem cobranças e sem justificativas. Não se renderia tão facilmente à condição de auxiliado. Principalmente porque todos os amigos e colegas tinham suas próprias vidas a guiar, então estaria sujeito não só à boa vontade de outrem, senão também a disponibilidades. Ou seja, a coincidências. Em última instância: passar os dias à mercê do destino. Deixaria de ser um sujeito para tornarem-no um objeto. Pior ainda: passivo na mão de um agente.

Sentia-se sobretudo saudável e apto a combater a negligência de uma aceitável inércia. O primeiro golpe, contudo, foi perceber que faltando-lhe um pé, perdia ainda duas mãos: impossível segurar muletas e outras coisas ao mesmo tempo. Tarefas simples como o desjejum tomavam um tempo muito maior - além de um esforço descomunal. Para o banho necessitava de novos procedimentos e ainda maior higiene. Seria uma boa idéia exercitar a expansão da bexiga, a fim de diminuir a freqüência de visitas ao toalete. Em suma, tentando aplicar no âmbito pessoal as lúdicas teorias organizacionais apreendidas no último emprego, naquela eventual crise sua rotina sofreria uma reengenharia, considerava-se flexível o suficiente e agiria proativamente para manter sua sinergia interna.

A cada instante, colecionava derrotas. Acabada a água do filtro, era incapaz de substituir o refil de vinte litros. Não poderia subir as escadas para utilizar computadores. O corpo exigia descansos constantes no calor tropical. Não conseguia se locomover em tempo hábil entre diferentes prédios. O suposto desânimo, todavia, era automaticamente convertido em motivação e em exercício de sua criatividade.

No meio de toda essa guerra pessoal, recebeu o evitado veredito do médico: era mister sujeitar-se imediatamente a uma cirurgia e ao repouso absoluto. Caso insistisse no crime, a pena seria no mínimo uma de diversas seqüelas listadas. Espírito humilhado, sensação de honra estuprada por um falo do destino canastrão, aquele mesmo em que não cria.

Agora, no conforto do seio da família, toma o anestésico antes do sono para suportar a violação de seu corpo e de sua alma.