quinta-feira, 5 de outubro de 2017

Traidores

Hoje à tarde teve aqui na cidade o que se chama de Unwetter, uma tempestade avassaladora, um tempo tão ruim e maluco, com ventania muito forte, que só um "mau tempo" não consegue descrever bem: é um destempo, uma intempérie (ainda preciso lidar com a frustração de uma língua rica como o português não ter palavras distintas para Wetter/weather e Zeit/time, mas vá lá, isso tem lá o seu charme).

Mais tarde fui a um teatro, ao lado da universidade, ao qual prometi ir desde que cheguei aqui: o Maxim Gorki Theater (¡que fuerte!, ¿no?). Eu tinha ficado fascinado com os cartazes das peças, todos com fotografias fortes e expressivas. Comprei dias atrás um dos poucos ingressos restantes e o destempo já tinha amenizado. Ao sair de casa, meu colega de apartamento e a namorada avisaram que ainda estava ventando muito e que o metrô estava parado. Resolvi ir de bicicleta pra não atrasar, pois de bonde e ônibus provavelmente não daria tempo. No caminho, realmente, um vento frio batendo contra minha direção, dificultando mais ainda. Por todo lado placas e bicicletas caídas, alguns galhos de árvore espalhados, semáforos apagados ou piscando, bombeiros retirando entulhos dos caminhos, uma passarela de pedestres tombada e uma grande nuvem escura ameaçando desabar - um pós-caos. Cheguei molhado, mas de suor, por dentro da blusa quase hermética, pois não choveu mais. 

A peça se chamava Verräter (Traidor). Uma montagem curiosa em termos de forma - pôsteres de bandas nas paredes, instrumentos de rock à esquerda e no fundo um terreno irregular negro que poderia ser tanto um rochedo quando um lixão ou ruínas; os atores às vezes usavam microfone, fosse pra cantar ou pra proferir seus textos (o que de vez em quando dava uma leve sensação de produção amadora), e havia projeções de imagens e videos em telas suspensas. Os personagens-atores quase todos com vidas destoantes da norma da sociedade burguesa alemã: Mareike, uma mulher que nasceu e cresceu um pequenas cidades decadentes da Alemanha Oriental, cujos pais viveram quase sempre desempregados, à base de ajuda financeira do Estado, num ambiente sem perspectiva para os jovens; Knut, um homem de raízes polonesas, casado (tecnicamente, em união civil) com outro homem, pai de uma menina; Mehmet, um homem turco-alemão que vivenciou os momentos de terror do contra-golpe de Erdogan quando passeava em Istambul com seu namorado alemão; Orit, uma mulher israelense que vive com seu filho adolescente; Çigdem, uma mulher turca-alemã que vive com a namorada e uma filha pequena; além de David, homem de origem colombiana, guitarrista que não chega a falar; e como anti-herói, Jakob/Bernd/Daniel, personagem misto, um homem alemão que configura o modelo dominante, branco e hétero, e que pretende levar a peça à sua maneira. Cada personagem faz um monólogo resumindo sua história e narrando momentos marcantes de sua vida, de alguma forma discriminados pelas instituições, seja a família, o governo, o funcionalismo público, o senso comum da população. Todos os personagens (com exceção dos alteregos de Daniel) têm os mesmo nomes de seus atores e o roteiro é construído como um trabalho de pesquisa, indicando que as histórias dos personagens são baseados nas vidas dos a(u)tores, como as próprias falas indicam ao longo da obra. É uma forte característica da produção contemporânea: a autobiografia como processo narrativo - em tempos brutos, as vidas das pessoas comuns geralmente são matéria fértil para a criação artística que retrate a realidade e denuncie as mazelas e a intromissão de algum modo violenta do sistema. Nesse contexto, cada um deles é "traidor": "traem" a família por não se reconhecerem mais naquele meio, "traem" a nação por não se encaixarem no padrão estabelecido e esperado, "traem" a religião por não concordarem com seus preceitos, "traem" a necessidade e a urgência da ação política pela exaustão física e mental. Nesse processo, tudo é traiçoeiro, desde a língua que trai por não ser efetiva, nem capaz de expressar tudo que o corpo e a mente pretendem, até os governantes, que traem a confiança de seu povo e os oprimem, muitas vezes brutalmente. Somos todos traidores, enfim, aqueles que desejam romper com essa tradição violenta, discriminadora, tóxica, aqueles que sonham com (e agem para) um mundo em que todos, independente de sua origem social, sua religião (ou sua arreligiosidade), sua vida sexual, sua cor de pele, sua identidade enfim, possam ter oportunidades semelhantes de buscar seus objetivos e construir suas vidas, longe de guerra, de opressão, de violência.

A peça satiriza e critica os líderes e partidos políticos, a ascensão mundial das forças conservadoras e xenófobas, relacionando cômica e astutamente com a reação do patriarcado diante dos recentes avanços sociais pelos direitos das mulheres, dos LGBTs, das minorias étnico-raciais, dos refugiados. Após uma apoteose catastrófica, em que esses poderes reacionários parecem tomar novamente as rédeas (que na verdade estão apenas mais frouxas que antes, nunca as deixaram, porém), vem um epílogo de esperança, através de uma metáfora tanto desgastada e ingênua quanto bela: nosso turbulento e temerário momento é uma lagarta, que deverá, durante a metamorfose, ceder suas células para que outas células nasçam e se transforme em borboleta. Contra a bruteza da situação, viver, amar, se divertir, dançar, fazer sexo é o antídoto para a amargura da lagarta - ela haverá de ceder.

No retorno pra casa, ainda frio, ainda com a trégua da chuva, apenas nuvens esparsas sobrevoando, uma lua cheia deslumbrante aparecendo vez ou outra. Com a esplêndida paisagem noturna, retomei o caminho que fiz rotineiramente nos fins de tarde ao longo desse semestre, voltando da universidade, passando pelas construções monumentais da Unten den Linden, os museus, a ópera, a catedral, a torre de TV na Alexanderplatz, a prefeitura, seguindo pela avenida paralela ao rio, por pontes e points badalados, percorrendo toda a extensão do muro grafitado na East Side Gallery, até passar pela ponte pitoresca de tijolos vermelhos com torres parecendo medievais. As mãos muito geladas pelo tempo frio contrastavam com o calor intenso dentro do casaco. 

Não estava deitado sobre um imenso bloco de pedra ao lado da calçada um sem-teto que eu sempre via, meses atrás, encolhido em seu saco de dormir, por vezes coberto com um plástico em dias de chuva. Deve ter se mudado pra outro lugar, pensei. De fato, adiante, na rua à qual por poucos dias ainda moro, vi um corpo deitado e bem agasalhado na entrada de um prédio onde moram apenas objetos e entulhos de pessoas que não tem espaço em seus apartamentos pequenos, mas que ainda podem alugar um cômodo extra pra guardar seus bens excedentes. Melhor ali, que é coberto. O inverno está chegando, temos que nos proteger.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

uma foto é uma foto é uma foto


de uma análise semiótica dá pra interpretar muita coisa, mas o significado para um observador depende sempre de suas suspeitas (ou quase verdades) - a partir desse substrato opaco e subjetivo é que se constrói uma narrativa inteira a partir de um instante capturado em certa perspectiva dimensional, dentro de certa moldura. uma imagem é uma seleção dentre infinitas outras possíveis em um curto espaço de tempo. pode ser prova irrefutável, pode ser especulação irrelevante, pode ser o que não é. pode significar nada, pode significar muito ou tudo, pra quem vê.

<< não é o que parece, eu posso explicar >>
pode e não pode, depende de quem viu e julgou

se uma risada é de escárnio ou de mera piada, se os elementos são velhos comparsas ou meros convidados, se o grupo é casual ou representativo de um momento, fruto de um processo democrático caótico ou de um golpe civil-parlamentar:

está tudo em nossa cabeça, em cada cabeça, em uma, em algumas, em muitas, muito raramente em todas

pode ou não representar a *realidade*, os *fatos*; pode até ser uma ficção *verdadeira* ou uma não-ficção parcial

vemos o que queremos ver, não tudo o que podemos

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quarta-feira, 28 de setembro de 2016

democracia

Relendo 'O Processo' de Kafka não pude deixar de relacionar esse conturbado emaranhado a dois imbróglios, um de foro pessoal e outro mais amplo e que compete a todos nós. O pessoal é um contrato imobiliário do qual não consigo, há meses, me livrar, ainda que eu não faça mais uso do local, numa situação em que a comunicação foge aos atos locucionais mais típicos - acordos reiteradamente não cumpridos, perguntas sem respostas, significados inconsistentes – estou nele e me é impossível deixá-lo por minha própria vontade. Tento, todavia, me convencer de que se trata de uma questão menor e a ser solucionada dentro em breve.

O outro se refere ao nosso segundo maior objeto de fé (após o dinheiro, a maior ficção que insistimos em materializar): a democracia. Claro que não farei apologia a ditaduras, a monarquias ou a feudalismos; mesmo que tenha se tornado um tanto dogmática, a democracia ainda me parece, em tese, o sistema político-social como maior potencial de justiça social e equilíbrio: o poder emana do povo, lindo isso. Mesmo a representativa, não direta, nos oferece uma suposta igualdade de direitos entre os cidadãos, que podem eleger com certa rotatividade seus representantes, através de eleições diretas (as indiretas já me aguçam a desconfiança).

Aí surge o primeiro ato de fé: as campanhas eleitorais. Candidatos propõem (ou não) programas de governo e fazem promessas que poderão ou não ser cumpridas. Confiamos a partir de nossa memória e nosso senso ideológico que um ou outro vai representar nossos ideais, de preferência tomando decisões melhores do que nós mesmos tomaríamos, com engajamento certamente maior que o nosso. Esperamos reiteradamente que isso seja verdade, ainda que a experiência nos mostre muitas vezes que raramente é.

Pois bem, fingimos acreditar nisso e passamos ao próximo passo: a confiança nas urnas e no processo de contagem de votos. Se for pelo voto em cédulas, confiamos que outras pessoas contarão corretamente esses votos, além de outras que fiscalizarão essa contabilidade. Pela via eletrônica, deixamos de lado, certamente por preguiça de exigir outra coisa mais sofisticada e de esperar tanto tempo (é muita ansiedade), nosso receio de uma possível manipulação digital, ainda que profissionais mais desconfiados afirmem que ela seja suscetível. Não sejamos adeptos da conspiração, é preciso se apegar a algo, senão não avançamos.

Candidatos eleitos, muitas decepções, algumas poucas alegrias: esperança acima de tudo. Se precisar, vamos à luta! O estado democrático de direito nos permite, está na Constituição. Qualquer desvio de conduta da polícia no sentido de coibir nossa manifestação, principalmente com violência, é mera ameaça fascista ao nosso sistema democrático, está excluída da democracia a repressão, todos os agentes de segurança são treinados e instruídos a proteger nossa vida e nossa constituição física; estão sempre a postos, a nosso serviço, para nossa segurança, com eles podemos sempre contar e nunca será necessário temê-los, eles, a garantia da manutenção de nossa democracia.

Voltemos ao âmbito geral de nossa confidência: o Estado, palco dos acirrados debates políticos, em que nossos agentes eleitos discutem os melhores caminhos para a população, para que cada indivíduo esteja minimamente protegido e pleno de oportunidades, que discutem a partir de seus princípios éticos o que é certo e errado, que votam a cada proposta pensando naqueles que mais precisam, no futuro dos fihos e netos de todos os seus eleitores que habitarão esse vasto território. Haverá, certamente, alguns acordos, que irão, claro, adiar um pouco o objetivo final; assim, porém, é a política, impossível agradar a todos, creiamos que cada um será agradado um pouquinho a cada período. Esses nobres enviados de nossas múltiplas pólis abrirão mão de seus confortos, de sua carreira profissional, de seus possíveis altos salários em outras áreas, para se dedicarem, por um curto período de tempo, renovável até a aposentadoria, ainda que mais próxima que a de seus eleitores, contudo potencialmente prolongável até a mais sábia idade, àqueles que o escolheram e, naturalmente, aos demais. Um governo de todos, para todos.

Tudo isso porque, como sabemos, o povo sabe o que faz. Não somos especialistas em tudo, mas sobre tudo nos informamos, tudo analisamos meticulosamente, de modo por princípio imparcial, a fim de formular uma sedimentada opinião, obviamente não definitiva, adaptável à primeira objeção mais irrefutável. Ninguém melhor que o povo, sempre altruísta, sempre preocupado com o próximo e simpático a cada indivíduo de seu povo, para eleger seus semelhantes, colocá-los no poder, confrontá-los, vigiá-los, tornar-se um de seus vigias, da guarda que protege e cobre o povo.

Somos todos um só corpo e um só espírito. E percebemos falhas, e discutimos, e ajustamos, e debatemos, e reformulamos, e nos apartamos, e ela está aí, mutante, plácida, vigorosa, inexorável. Ainda que alguém titubeie e enfraqueça sua fé, que confie ou desacredite, exerça sua cidadania ou deixe de votar, faça campanha ou abdique de eleger, participe de movimentos ou reclame do parasitismo, empreenda com sua exclusiva, única e inabalável força de vontade ou realize com excelência seu serviço público, gere riquezas ou usufura de direitos, a democracia estará aí, abarcando a todos, levando cada um de nós em sua corrente rumo ao mágico e ao desconhecido.

A decisão é de todos, o destino é entrecruzado. A saida é única: não há.


terça-feira, 29 de setembro de 2015

sendito ("lichtung")

sendito

alguns acham que
tireida e esquerta
não dem como
confuntir.
que tisparade!


***************

lichtung

manche meinen
lechts und rinks
kann man nicht
velwechsern.
werch ein illtum


(Ernst Jandl)

segunda-feira, 13 de abril de 2015

trabalho de Sísifo

Günter Grass morreu hoje deixando uma vasta obra. Por mais que irritasse muitos de seus conterrâneos e fosse considerando por vários um grande hipócrita, teve um papel crucial dentro da cultura alemã na segunda metade do século XX: com seus livros, principalmente a trilogia inicial, esse autor politicamente engajado fez com que os alemães varressem sua história a contrapelo.

Em vez de, como muitos de seus contemporâneos, simplesmente negar qualquer participação nas atrocidades perpetradas pelos nazistas, Grass compreendeu que não foram indivíduos dotados de um grande mal os responsáveis por um dos sistemas políticos mais tenebrosos de nossa história recente, mas sim, muito pelo contrário, a grande massa de cidadãos, entusiasmados ou pacatos e, de forma geral, bem intencionados, que de uma forma ou de outra aceitaram a ocorrência de certas injustiças em prol de um sonho maior.

O que mais impressiona em um livro como 'O tambor' é perceber que quem permitiu e fomentou o nazismo foram pessoas comuns, como eu ou qualquer membro de minha família, com crenças e sonhos, com disciplina e pequenos vícios, mas que acreditaram que a união nacional se daria pela exclusão dos diferentes. Talvez eles só não previssem que essa exclusão tomaria os rumos da solução final, mas compraram a ideia de que não dá pra conviver com os demais.

Me dá um certo calafrio quando eu vejo hoje pessoas próximas a mim, alguns muito queridos, repetirem um discurso muito semelhante ao que se pode ler nas vozes dos personagens desse livro de meio século atrás. Pessoas de bom coração e que mandam "pra Cuba" qualquer pessoa que discorde de sua ideologia, como se concordar com o establishment, com o status quo, não fosse em si mesmo uma ideologia. Que desejam fazer das leis de sua igreja as leis para todos, que ocupam os espaços públicos com símbolos da sua religião, enquanto destroem os templos dos outros. Que ignoram o genocídio de índios por construções de madeireiras, mineradoras ou hidrelétricas; que ignora o genocídio da população negra disfarçado de bala perdida, de UPP, de auto de resistência. Que acham que todo preso é bandido ruim merecedor de tortura e morte (independente do crime cometido e de que esteja ainda esperando julgamento). Que acha que um jovem de 16 anos que comete delito é uma alma perdida sem recuperação. Que gays "escolhem esse caminho" porque não pensam em suas famílias e por isso devem apanhar, às vezes até a morte. Que cada um é merecedor de seu destino, como se nossa sociedade fosse regida pela meritocracia absoluta (já que pobre trabalha pouco e se não passa no vestibular é por incompetência).

Sei que alguns lerão isso e dirão que é um absurdo comparar nossa sociedade ao nazismo. Peço apenas que se lembrem do integralismo e da ditadura militar; das milícias; das unidades carcerárias e dos manicômios, das favelas incendiadas e ocupadas por bandidos ou militares igualmente assassinos, dos que morreram e morrem defendendo o interesse coletivo nas periferias e rincões do país.


Se puderem, leiam 'O tambor', 'Gato e rato e 'Anos de cão' e vejam-se espelhados aí nesse contexto.


terça-feira, 31 de março de 2015

KKKkkkkkk huehuebr

Às vezes eu penso se a capacidade rasteira de estabelecer correlações entre as coisas e seus significados, os símbolos que representam, não se reflete na falta de profundidade na análise conjuntural em contextos sociais, culturais, políticos e econômicos.

Fico tentando entender se é minha cabeça que está condicionada a analisar hipercriativamente textos e situações e acaba superinterpretando as coisas. Toda vez que eu observo um objeto simbólico usado num contexto deslocado e sem a devida atenção para o sentido tradicional – menos ainda para a nova relação criada –, eu fico me perguntando se eu sou paranoico ou se os envolvidos é que não conseguem enxergar (ou aceitar) o absurdo semiótico das coisas.

No exemplo mais recente, os caras da Unesp que usaram roupa da Ku Klux Klan durante um trote. Ah, é só zuera. Pô, não é possível que tenham tirado aquelas roupas do nada. Os veteranos do curso sabem muito bem o contexto de onde foi tirado e o significado delas. Cientes disso, de duas uma: ou queriam ridicularizar os KKK (essa sigla sim, fica engraçada em tempos de chat –  mas só no Brasil –  e só na internet) ao deslocarem sua imagem para uma brincadeira entre universitários, ou eles quiseram usar a imagem de poder violento e a noção equivocada de superioridade daquele grupo de brancos para submeter os calouros à tal brincadeira. Parece-me que a primeira opção não é verdadeira.

Sendo mais provável a segunda, utiliza-se uma imagem medonha e que, para uma sociedade com um mínimo de memória, alude a um trauma coletivo. Mas ao transformá-la em mera brincadeira, deseja-se destituí-la de sua pesada carga negativa. Isso só seria lógico em dois casos: se o trauma já estivesse completamente superado na sociedade (sabemos que não está de forma alguma) ou se a lembrança coletiva do evento traumático (a perseguição e execução de negros nos EUA) já tivesse se rarefeito a tal ponto de não ser mais importante - quiçá mesmo nunca tenha sido relevante para quem o está reencenando agora. Se a lógica não se aplica nesse caso, então realmente a zoeira não tem limites e aceita-se sem pudores o esvaziamento daquele símbolo anterior, tornando irrelevante seu significado tradicional. Uma brincadeira é só uma brincadeira? Um simples ato autoproclamado como despolitizado, ao tomar um símbolo de uma agressiva opressão social (ou racial - apesar de que raça não existe) e colocá-lo num contexto de zombaria não toma, assim, um efeito político, ainda que involuntário?

Nesse caso, é notável a falta de respeito pela história da violência aos negros, pois houve uma reencenação daquele passado, seguindo os mais comuns rituais de memória coletiva que temos (sejam religiosos, como a Paixão de Cristo no Natal, políticos, como a parada do 7 de setembro, ou simplesmente econômicos, como a festa da uva, do milho ou do zebu na cidadezinha mais próxima). Todas essas reencenações mantém vivas, de modo distorcido ou não – aliás, a verdade histórica é factual? –, um evento do passado e sua capacidade de reforçá-lo ou refutá-lo, mas nunca de ignorá-lo.

Da mesma forma, eu achava incômodo que os Anonymous mundo afora, inclusive nas jornadas de junho de 2013 no Brasil, usassem indiscriminadamente a máscara de Guy Fawkes como símbolo da desobediência e da revolta, mas sem atentar para o fato de que o personagem histórico não era lá muito democrático, muito menos anarquista. O símbolo criado pela máscara no 'V for Vendetta' prevaleceu na memória da sociedade pop (mesmo porque talvez a maioria esmagadora dos brasileiros nunca fosse ouvir falar de Fawkes, não fosse pela apropriação da imagem de sua silhueta pelo filme e pela posterior reapropriação pelo Anonymous). Mas uma vez que se populariza tal símbolo, fica fácil hoje em dia descobrir sua origem. O que se faz depois com tal informação – qual o seu significado anterior – é uma decisão, deliberada ou não.

Não me espanta que os manifestantes #acordabrasil tenham escolhido a cor amarela para representar o seu sentimento nacionalista (afinal, é a cor da camisa da seleção de futebol e torcer para o time ou xingar a chefa de estado durante a copa é uma das maiores expressões de patriotismo por aqui). Espanta-me, sim, a reação indiferente quando questionados a respeito do fato de se usar, durante uma manifestação justamente contra a corrupção, o uniforme da CBF, uma das instituições mais corruptas do país, que usa uma paixão nacional como plataforma de enriquecimento para uma oligarquia. Isso sem levar em conta que esses manifestantes pretendem ser os porta-vozes da nação, como se tudo aquilo que eles reivindicam (além das obviedades pró-educação e contra corrupção) fosse realmente pelo bem da nação como um todo (incluindo aí todos os filhos da pátria, de todas as classes) e não o desejo de um grupo mais ou menos restrito que por acaso é o público-alvo das redes de comunicação, as quais, de forma inédita, participaram da divulgação e da cobertura de uma manifestação. Por acaso, não vi na última semana nenhuma menção de apoio desses amarelinhos aos professores da rede estadual que estão em greve. E, na minha humilde inventividade, não vejo forma mais eficaz de melhorar a educação do que aumentar os salários dos professores.

Recentemente, li para uma disciplina sobre Semântica e Pragmática um trecho de 'Alice no País dos Espelhos', de Lewis Carroll, em que o onipresente Humpty Dumpty discute com a, às vezes, irritante – pois quase sempre bastante razoável – heroína. Ele insinua que a palavra "glória" signifique um "argumento arrasador".
–  Quando uso uma palavra –  disse Humpty Dumpty em tom escarninho –  ela significa exatamente aquilo que eu quero que signifique... nem mais, nem menos.
–  A questão –  ponderou Alice – é saber se o senhor pode fazer as palavras dizerem coisas diferentes.
–  A questão –  replicou Humpty Dumpty –  é saber quem é que manda. É só isso.


É só amarelo. É só uma máscara. É só brincadeira. É só isso.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

No sonho da última noite eu havia convidado inúmeras e diversas pessoas para um churrasco no condomínio do meu prédio na segunda-feira. Já pela manhã os convidados, inclusive de outras cidades distantes, foram se aprochegando e servindo-se de cerveja, mas eu, como sempre, havia esquecido de comprar as comidas, por isso peguei carona com alguns semi-conhecidos (aparentemente pessoas que moravam comigo, mas que eu não conhecia muito bem, ou simplesmente vizinhos de apartamento que estavam passando por ali pra sair). O labiríntico caminho atá a garagem me deixou em dúvidas se eu realmente conhecia bem o lugar onde morava ou se eu porventura realmente residia ali. Finalmente achamos o elevador, que partiu até a saída do condomínio e de lá para a rua. Enfim notei que ao lado do condomínio, aproximadamente dentro dele, existia um shopping center, o qual certamente haveria de conter um supermercado. Demos voltas em volta do condomínio, que parecia se distanciar cada vez mais. Enquanto o supermercado nunca chegava, fiz mentalmente a lista de coisas a se comprar: pão, carne, salada, legumes para assar - havia aqueles que gostavam, inclusive eu e alguns vegetarianos. As horas passavam sem que eu descobrisse que horas eram. Percebendo que eles nunca me levariam ao mercado, pedi que me deixassem ali na rua, onde acabara de nevar, diminuindo um pouco o calor de ontem. Pensei que seria melhor ir até o Dalbem, não tão longe de minha casa e ao qual eu já estava acostumado. Duas meninas atravessaram a rua até um ponto de ônibus, o que me surpreendeu pelo fato de que nem todos - sequer eu - dispúnhamos de carros e me fez notar que qualquer outro destino estaria demasiado distante. Já imaginando a quantidade de famintos insatisfeitos com o evento, procurei passar antes em meu apartamento para que pudesse pelo menos me vestir, já que à busca por escadas ou elevadores  através de corredores e portas sinalizadas com mensagens dúbias, eu havia notado minha nudez, que por sorte poderia ser minimizada com a ajuda de um chapéu. Enfim em casa, tentava encontrar explicações para minha falta de planejamento, para o motivo da festividade e para o lapso da memória, uma vez que não me recordava de fazer convite a quem fosse; o evento estava acontecendo, mas sinceramente não lembrava de idealizá-lo. Dada a impossibilidade de chegar ao mercado, de vestir-me e de voltar ao churrasco, deduzi tratar-se de um fenômeno onírico e aguardei até que a vontade de ir ao banheiro me despertasse novamente, não sem imaginar que eu deveria levantar logo para preparar o churrasco desta segunda que segue à primeira quinta.