segunda-feira, 22 de junho de 2009

Picolé de morango

publicado n'A Patada em 21 de janeiro de 2004

Eu estava no parque, ao lado de meu carrinho de picolé, contemplando uma rara tarde ensolarada de céu limpo. Um daqueles dias em que dá vontade de ir à praia, sentar à sombra de um quiosque, apreciar uma cervejinha bem gelada, soprar a nuca suada da esposa, só pra ela se Justificararrepiar e a gente dar risada.

- Tem picolé de molango?

Virei em direção à voz doce e suave e encontrei a imagem da inocência, uma linda garotinha de uns cinco anos, negrinha, com o cabelo pixaim adornado em diversas trancinhas cheias de miçangas. O olhar ansioso pela guloseima me fitava, exigindo a resposta o quanto antes.

- Tem sim, princesinha, toma!

Enquanto a mãe me pagava, a criança tentava em vão abrir, rasgar com unhas e dentes o último empecilho para chegar ao picolé, a embalagem plástica, que insistia em ficar ali, adiando a alegria das papilas gustativas da menina. A mãe a ajudou e foram andando em direção ao campinho de areia, onde as crianças podiam se divertir sob os olhares das genitoras.

Não pude deixar de continuar a observar aquela criaturinha. Ao chegarem à pracinha de brinquedos, a menina percebeu que um guri, loirinho, de olhos claros, mais ou menos da sua idade, não tirava o olho de seu picolé. Receosa entre deixar de aproveitá-lo ao máximo e ver o menino com vontade, decidiu-se, silenciosamente, por oferecer-lhe um pedaço, levando-o rumo à boca do desconhecido novo amigo.

Eu queria, naquele momento, ter uma câmera fotográfica, ou mesmo ter o dom de pintar, desenhar, qualquer coisa de modo a gravar a cena e repassá-la ao mundo inteiro, para esse bando de cidadãos honestos, que trabalham dia e noite e voltam para o lar, o claustro diário, acompanham o telejornal e desejam a morte dos ladrões cruéis, que tiram a vida de outros semelhantes cidadãos honestos. Algo doce e sutil o suficiente para talhar uma ferida profunda no egoísmo cotidiano das pessoas. Mas a situação era por demais tenra e eu não conseguiria de forma alguma ter algum sentimento vil.

A solidariedade entre as duas crianças, tão diferentes, mas tão iguais, me tocou. Eu quis abraçá-las bem forte, como se fossem meus netos.

O garotinho sorriu, agradecido, mas antes que ele pudesse aceitar, sua mãe percebeu o que acontecia e puxou-o subitamente para o seu lado, dando-lhe uma bronca e um tapa no bumbum. Do outro lado, a menina assistia estarrecida ao acontecimento e imediatamente levou um puxão de sua mãe, querendo protegê-la do menino que queria roubar o picolé da filha - foi o que ela pensou. No solavanco, o picolé soltou-se da mão da menina e voou, girando no ar, até cair no chão de areia. As duas crianças acompanharam a queda como pai vendo o filho saltar da janela de um edifício. Os olhos de ambos se encheram de lágrimas, porém nenhum chorou de verdade.

As mães começaram a trocar ofensas, dizendo coisas feias perto das crianças, sem o menor pudor. Elas, réus inocentes de um crime cometido por advogados e promotores, ouviam assustadas, em silêncio. A menina começou a chorar, o menino olhou com pena.

Inconformado, peguei dois picolés de morango de meu carrinho e fui andando em direção a eles, esperançoso de acabar com a confusão e dar algum conforto aos pequeninos. Estes me avistaram e foram, aos poucos, engolindo o soluço. Eu, já próximo, podia sentir a sua alegria me contagiando, quando as mães, irritadas, pegaram seus respectivos filhos e tomaram caminhos opostos. As crianças ainda me olhavam, uma de cada lado, com uma expressão de quem esteve perto da glória e não a alcançou. Em seus rostos, uma tristezinha por algo que não precisava ter acontecido.

Eu parei no meio do caminho, estático, sem saber o que pensar, nem o que fazer, com dois picolés de morango derretendo em minhas mãos e escorrendo pelos cotovelos. Até alguém gritar do carrinho:

- Ô, picolezeiro, dá pra vir atender logo?

terça-feira, 16 de junho de 2009

Entrelinhas de Luther King

escrito em 2000, publicado n'A Patada em 10 de dezembro de 2003

Um dia…
Jovens aprenderão palavras que não irão entender.
Irão apenas adicioná-las à sua gama de definições.
Crianças da Índia perguntarão:
O que é fome?
É algo parecido com depressão?
Crianças do Alabama perguntarão:
O que é segregação racial?
É o mesmo que solidão urbana?
Crianças de Hiroshima perguntarão:
O que é bomba atômica?
Tem relação com suicídio coletivo?
Crianças nas escolas perguntarão:
O que é guerra?
Tem a ver com extinção de espécies?
Tu irás responder-lhes,
com um soluço de saudade.
Dirás a elas,
escondendo lágrimas nos olhos:
Tais palavras não são mais usadas,
Assim como diligências, navios negreiros ou escravidão
Sapiência, fé ou emoção
Amor, amizade -
Palavras que perderam o sentido.
Cortaram o fio da sensibilidade e do companheirismo.
Por isso elas foram – todas – removidas dos dicionários.

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One Day…
Youngsters will learn words they will not understand.
Children from India will ask:
What is hunger?
Children from Alabama will ask:
What is racial segregation?
Children from Hiroshima will ask:
What is the atomic bomb?
Children at school will ask:
What is war?
You will answer them.
You will tell them:
Those words are not used any more,
Like stagecoaches, galleys, or slavery -
Words no longer meaningful.
That is why they have been removed from dictionaries.

Martin Luther King, Jr.