Günter Grass morreu hoje deixando uma vasta obra. Por mais
que irritasse muitos de seus conterrâneos e fosse considerando por vários um
grande hipócrita, teve um papel crucial dentro da cultura alemã na segunda
metade do século XX: com seus livros, principalmente a trilogia inicial, esse autor politicamente engajado fez com que os alemães varressem sua história a contrapelo.
Em vez de, como muitos de seus contemporâneos, simplesmente
negar qualquer participação nas atrocidades perpetradas pelos nazistas, Grass
compreendeu que não foram indivíduos dotados de um grande mal os responsáveis
por um dos sistemas políticos mais tenebrosos de nossa história recente, mas
sim, muito pelo contrário, a grande massa de cidadãos, entusiasmados ou pacatos
e, de forma geral, bem intencionados, que de uma forma ou de outra aceitaram a
ocorrência de certas injustiças em prol de um sonho maior.
O que mais impressiona em um livro como 'O tambor' é
perceber que quem permitiu e fomentou o nazismo foram pessoas comuns, como eu
ou qualquer membro de minha família, com crenças e sonhos, com disciplina e pequenos vícios,
mas que acreditaram que a união nacional se daria pela exclusão dos diferentes.
Talvez eles só não previssem que essa exclusão tomaria os rumos da solução
final, mas compraram a ideia de que não dá pra conviver com os demais.
Me dá um certo calafrio quando eu vejo hoje pessoas próximas
a mim, alguns muito queridos, repetirem um discurso muito semelhante ao que se
pode ler nas vozes dos personagens desse livro de meio século atrás. Pessoas de bom coração e que mandam
"pra Cuba" qualquer pessoa que discorde de sua ideologia, como se
concordar com o establishment, com o status quo, não fosse em si mesmo uma
ideologia. Que desejam fazer das leis de sua igreja as leis para todos, que
ocupam os espaços públicos com símbolos da sua religião, enquanto destroem os
templos dos outros. Que ignoram o genocídio de índios por construções de madeireiras,
mineradoras ou hidrelétricas; que ignora o genocídio da população negra
disfarçado de bala perdida, de UPP, de auto de resistência. Que acham que todo
preso é bandido ruim merecedor de tortura e morte (independente do crime
cometido e de que esteja ainda esperando julgamento). Que acha que um jovem de
16 anos que comete delito é uma alma perdida sem recuperação. Que gays
"escolhem esse caminho" porque não pensam em suas famílias e por isso
devem apanhar, às vezes até a morte. Que cada um é merecedor de seu destino,
como se nossa sociedade fosse regida pela meritocracia absoluta (já que pobre
trabalha pouco e se não passa no vestibular é por incompetência).
Sei que alguns lerão isso e dirão que é um absurdo comparar
nossa sociedade ao nazismo. Peço apenas que se lembrem do integralismo e da
ditadura militar; das milícias; das unidades carcerárias e dos manicômios, das favelas incendiadas e ocupadas por bandidos ou militares igualmente assassinos, dos que morreram e
morrem defendendo o interesse coletivo nas periferias e rincões do país.
Se puderem, leiam 'O tambor', 'Gato e rato e 'Anos de cão' e
vejam-se espelhados aí nesse contexto.