Relendo 'O Processo' de Kafka não pude deixar de relacionar esse conturbado emaranhado a dois imbróglios, um de foro pessoal e outro mais amplo e que
compete a todos nós. O pessoal é um contrato imobiliário do qual não consigo,
há meses, me livrar, ainda que eu não faça mais uso do local, numa situação em
que a comunicação foge aos atos locucionais mais típicos - acordos
reiteradamente não cumpridos, perguntas sem respostas, significados
inconsistentes – estou nele e me é impossível deixá-lo por minha própria
vontade. Tento, todavia, me convencer de que se trata de uma questão menor e a ser
solucionada dentro em breve.
O outro se refere ao nosso segundo maior objeto de fé (após
o dinheiro, a maior ficção que insistimos em materializar): a democracia. Claro
que não farei apologia a ditaduras, a monarquias ou a feudalismos; mesmo que
tenha se tornado um tanto dogmática, a democracia ainda me parece, em tese, o
sistema político-social como maior potencial de justiça social e equilíbrio: o
poder emana do povo, lindo isso. Mesmo a representativa, não direta, nos
oferece uma suposta igualdade de direitos entre os cidadãos, que podem eleger
com certa rotatividade seus representantes, através de eleições diretas (as
indiretas já me aguçam a desconfiança).
Aí surge o primeiro ato de fé: as campanhas eleitorais.
Candidatos propõem (ou não) programas de governo e fazem promessas que poderão
ou não ser cumpridas. Confiamos a partir de nossa memória e nosso senso
ideológico que um ou outro vai representar nossos ideais, de preferência
tomando decisões melhores do que nós mesmos tomaríamos, com engajamento
certamente maior que o nosso. Esperamos reiteradamente que isso seja verdade,
ainda que a experiência nos mostre muitas vezes que raramente é.
Pois bem, fingimos acreditar nisso e passamos ao próximo
passo: a confiança nas urnas e no processo de contagem de votos. Se for pelo
voto em cédulas, confiamos que outras pessoas contarão corretamente esses
votos, além de outras que fiscalizarão essa contabilidade. Pela via eletrônica,
deixamos de lado, certamente por preguiça de exigir outra coisa mais
sofisticada e de esperar tanto tempo (é muita ansiedade), nosso receio de uma
possível manipulação digital, ainda que profissionais mais desconfiados afirmem
que ela seja suscetível. Não sejamos adeptos da conspiração, é preciso se
apegar a algo, senão não avançamos.
Candidatos eleitos, muitas decepções, algumas poucas
alegrias: esperança acima de tudo. Se precisar, vamos à luta! O estado
democrático de direito nos permite, está na Constituição. Qualquer desvio de
conduta da polícia no sentido de coibir nossa manifestação, principalmente com
violência, é mera ameaça fascista ao nosso sistema democrático, está excluída
da democracia a repressão, todos os agentes de segurança são treinados e
instruídos a proteger nossa vida e nossa constituição física; estão sempre a
postos, a nosso serviço, para nossa segurança, com eles podemos sempre contar e
nunca será necessário temê-los, eles, a garantia da manutenção de nossa
democracia.
Voltemos ao âmbito geral de nossa confidência: o Estado,
palco dos acirrados debates políticos, em que nossos agentes eleitos discutem
os melhores caminhos para a população, para que cada indivíduo esteja
minimamente protegido e pleno de oportunidades, que discutem a partir de seus
princípios éticos o que é certo e errado, que votam a cada proposta pensando
naqueles que mais precisam, no futuro dos fihos e netos de todos os seus
eleitores que habitarão esse vasto território. Haverá, certamente, alguns
acordos, que irão, claro, adiar um pouco o objetivo final; assim, porém, é a
política, impossível agradar a todos, creiamos que cada um será agradado um
pouquinho a cada período. Esses nobres enviados de nossas múltiplas pólis
abrirão mão de seus confortos, de sua carreira profissional, de seus possíveis
altos salários em outras áreas, para se dedicarem, por um curto período de
tempo, renovável até a aposentadoria, ainda que mais próxima que a de seus
eleitores, contudo potencialmente prolongável até a mais sábia idade, àqueles
que o escolheram e, naturalmente, aos demais. Um governo de todos, para todos.
Tudo isso porque, como sabemos, o povo sabe o que faz. Não
somos especialistas em tudo, mas sobre tudo nos informamos, tudo analisamos
meticulosamente, de modo por princípio imparcial, a fim de formular uma
sedimentada opinião, obviamente não definitiva, adaptável à primeira objeção
mais irrefutável. Ninguém melhor que o povo, sempre altruísta, sempre
preocupado com o próximo e simpático a cada indivíduo de seu povo, para eleger
seus semelhantes, colocá-los no poder, confrontá-los, vigiá-los, tornar-se um
de seus vigias, da guarda que protege e cobre o povo.
Somos todos um só corpo e um só espírito. E percebemos falhas, e discutimos, e ajustamos, e debatemos, e reformulamos, e nos apartamos, e ela está aí, mutante, plácida, vigorosa, inexorável. Ainda que alguém
titubeie e enfraqueça sua fé, que confie ou desacredite, exerça sua cidadania
ou deixe de votar, faça campanha ou abdique de eleger, participe de movimentos
ou reclame do parasitismo, empreenda com sua exclusiva, única e inabalável
força de vontade ou realize com excelência seu serviço público, gere riquezas
ou usufura de direitos, a democracia estará aí, abarcando a todos, levando cada
um de nós em sua corrente rumo ao mágico e ao desconhecido.
A decisão é de todos, o destino é entrecruzado. A saida é
única: não há.