sábado, 26 de junho de 2010

A day in life


Gigante e eloquente, seguia desfilando o elefante pela avenida semi-pavimentada, cheia de buracos, remendos, com lobadas e depressões aqui e ali. Defecava como sempre um esterco de odor agradável a muitos olfatos, tórpidos de deleite ou êxtase, quando esguichou sua água trombática no gnu que se esforçava em manter-se aparte do espetáculo. Hienas e avestruzes deleitavam-se ululantes em torno do proboscídeo.

Mabecos que rondavam por perto uivaram em reprovação, despertando a atenção de lêmures esticados sobre as cabeças das girafas. Os pequenos bichos, saturados daquela apelativa e alienante ostentação de marfins, desceram rapidamente pelos pescoços longínquos e atacaram massivamente coquinhos em direção a uma das patas do elefante, gritando à plateia que olhasse por um instante ao azul do céu. Os mini-projéteis causaram-lhe um perceptível e indolor arranhão na pele cascuda. O público continuou estupefato com a afetada riqueza visual do mamífero maior. O elefante decidiu interromper o jorro nasal para utilizá-lo em momento mais oportuno.

E seguiu sua pomposa parada festiva, para satisfação de babuínos, gibões e gorilas, cercado de flamingos, chacais e guepardos.

(Os lêmures abrigaram-se novamente de focinhos empinados em suas guaritas, enquanto as hienas esgoelavam-se em risadas sabendo que mais tarde a carniça podre dos espectadores estaria mais uma vez disponível.)


sábado, 19 de junho de 2010

Radical

Numa coluna da casa
Há a raiz de uma árvore
      Podada

A cada estação cresce a árvore
E mais uma vez é
      Podada

Abaixo da casa
Há uma fundação
Perfurando o solo
A erguer a construção

A raiz disputa lugar com a fundação
A raiz - orgânica - fere a fundação
Acha nutrientes no solo
Para crescer a árvore

Pela coluna da casa
Desce uma canaleta
Na chuva jorra água
Escoa pela ardósia
E some pelo ralo

Um pouco da água não desaparece no ralo
se espalha pela ardósia - prévio solo rígido - e na fissura do piso, em torno do caule
Se esvai
pela
fundação
atinge
o
solo

A água de cima
junta-se
ao solo de baixo
Motivam a raiz a alimentar a planta
E fomentam a guerra - raiz contra fundação

A raiz luta contra a fundação da casa
      Vence

Vitorioso, cresce o caule
Com tímidos galhos
Folhoso verdejante
Vitorioso, logo
      Podado

O sol ilumina a casa e as folhas
A casa estagnada não progride
As folhas iluminadas alimentam
A planta que progride
      Podada

O que vem do alto e do fundo
É pela planta
O que fica no meio, estático
É pelo homem e para ele
Não para a humanidade

A raiz é fundação da árvore
Ainda projetada, inexistente
Abstrata e desarmada
O concreto armado é fundação da casa

Raiz vence concreto
Árvore não vence casa

      Raiz, vens de baixo
      Eu, coluna, ergo-me acima
            orior supra ergo sum
      Não queira deslocar-me
      Oprimo-te em prol da casa

Vitorioso homem sobre natureza
Se acaba o homem, perde a casa