terça-feira, 31 de março de 2015

KKKkkkkkk huehuebr

Às vezes eu penso se a capacidade rasteira de estabelecer correlações entre as coisas e seus significados, os símbolos que representam, não se reflete na falta de profundidade na análise conjuntural em contextos sociais, culturais, políticos e econômicos.

Fico tentando entender se é minha cabeça que está condicionada a analisar hipercriativamente textos e situações e acaba superinterpretando as coisas. Toda vez que eu observo um objeto simbólico usado num contexto deslocado e sem a devida atenção para o sentido tradicional – menos ainda para a nova relação criada –, eu fico me perguntando se eu sou paranoico ou se os envolvidos é que não conseguem enxergar (ou aceitar) o absurdo semiótico das coisas.

No exemplo mais recente, os caras da Unesp que usaram roupa da Ku Klux Klan durante um trote. Ah, é só zuera. Pô, não é possível que tenham tirado aquelas roupas do nada. Os veteranos do curso sabem muito bem o contexto de onde foi tirado e o significado delas. Cientes disso, de duas uma: ou queriam ridicularizar os KKK (essa sigla sim, fica engraçada em tempos de chat –  mas só no Brasil –  e só na internet) ao deslocarem sua imagem para uma brincadeira entre universitários, ou eles quiseram usar a imagem de poder violento e a noção equivocada de superioridade daquele grupo de brancos para submeter os calouros à tal brincadeira. Parece-me que a primeira opção não é verdadeira.

Sendo mais provável a segunda, utiliza-se uma imagem medonha e que, para uma sociedade com um mínimo de memória, alude a um trauma coletivo. Mas ao transformá-la em mera brincadeira, deseja-se destituí-la de sua pesada carga negativa. Isso só seria lógico em dois casos: se o trauma já estivesse completamente superado na sociedade (sabemos que não está de forma alguma) ou se a lembrança coletiva do evento traumático (a perseguição e execução de negros nos EUA) já tivesse se rarefeito a tal ponto de não ser mais importante - quiçá mesmo nunca tenha sido relevante para quem o está reencenando agora. Se a lógica não se aplica nesse caso, então realmente a zoeira não tem limites e aceita-se sem pudores o esvaziamento daquele símbolo anterior, tornando irrelevante seu significado tradicional. Uma brincadeira é só uma brincadeira? Um simples ato autoproclamado como despolitizado, ao tomar um símbolo de uma agressiva opressão social (ou racial - apesar de que raça não existe) e colocá-lo num contexto de zombaria não toma, assim, um efeito político, ainda que involuntário?

Nesse caso, é notável a falta de respeito pela história da violência aos negros, pois houve uma reencenação daquele passado, seguindo os mais comuns rituais de memória coletiva que temos (sejam religiosos, como a Paixão de Cristo no Natal, políticos, como a parada do 7 de setembro, ou simplesmente econômicos, como a festa da uva, do milho ou do zebu na cidadezinha mais próxima). Todas essas reencenações mantém vivas, de modo distorcido ou não – aliás, a verdade histórica é factual? –, um evento do passado e sua capacidade de reforçá-lo ou refutá-lo, mas nunca de ignorá-lo.

Da mesma forma, eu achava incômodo que os Anonymous mundo afora, inclusive nas jornadas de junho de 2013 no Brasil, usassem indiscriminadamente a máscara de Guy Fawkes como símbolo da desobediência e da revolta, mas sem atentar para o fato de que o personagem histórico não era lá muito democrático, muito menos anarquista. O símbolo criado pela máscara no 'V for Vendetta' prevaleceu na memória da sociedade pop (mesmo porque talvez a maioria esmagadora dos brasileiros nunca fosse ouvir falar de Fawkes, não fosse pela apropriação da imagem de sua silhueta pelo filme e pela posterior reapropriação pelo Anonymous). Mas uma vez que se populariza tal símbolo, fica fácil hoje em dia descobrir sua origem. O que se faz depois com tal informação – qual o seu significado anterior – é uma decisão, deliberada ou não.

Não me espanta que os manifestantes #acordabrasil tenham escolhido a cor amarela para representar o seu sentimento nacionalista (afinal, é a cor da camisa da seleção de futebol e torcer para o time ou xingar a chefa de estado durante a copa é uma das maiores expressões de patriotismo por aqui). Espanta-me, sim, a reação indiferente quando questionados a respeito do fato de se usar, durante uma manifestação justamente contra a corrupção, o uniforme da CBF, uma das instituições mais corruptas do país, que usa uma paixão nacional como plataforma de enriquecimento para uma oligarquia. Isso sem levar em conta que esses manifestantes pretendem ser os porta-vozes da nação, como se tudo aquilo que eles reivindicam (além das obviedades pró-educação e contra corrupção) fosse realmente pelo bem da nação como um todo (incluindo aí todos os filhos da pátria, de todas as classes) e não o desejo de um grupo mais ou menos restrito que por acaso é o público-alvo das redes de comunicação, as quais, de forma inédita, participaram da divulgação e da cobertura de uma manifestação. Por acaso, não vi na última semana nenhuma menção de apoio desses amarelinhos aos professores da rede estadual que estão em greve. E, na minha humilde inventividade, não vejo forma mais eficaz de melhorar a educação do que aumentar os salários dos professores.

Recentemente, li para uma disciplina sobre Semântica e Pragmática um trecho de 'Alice no País dos Espelhos', de Lewis Carroll, em que o onipresente Humpty Dumpty discute com a, às vezes, irritante – pois quase sempre bastante razoável – heroína. Ele insinua que a palavra "glória" signifique um "argumento arrasador".
–  Quando uso uma palavra –  disse Humpty Dumpty em tom escarninho –  ela significa exatamente aquilo que eu quero que signifique... nem mais, nem menos.
–  A questão –  ponderou Alice – é saber se o senhor pode fazer as palavras dizerem coisas diferentes.
–  A questão –  replicou Humpty Dumpty –  é saber quem é que manda. É só isso.


É só amarelo. É só uma máscara. É só brincadeira. É só isso.

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