Às vezes eu penso se a capacidade rasteira de estabelecer correlações
entre as coisas e seus significados, os símbolos que representam, não se
reflete na falta de profundidade na análise conjuntural em contextos sociais,
culturais, políticos e econômicos.
Fico tentando entender se é minha cabeça que está condicionada
a analisar hipercriativamente textos e situações e acaba superinterpretando as
coisas. Toda vez que eu observo um objeto simbólico usado num contexto
deslocado e sem a devida atenção para o sentido tradicional – menos ainda para
a nova relação criada –, eu fico me perguntando se eu sou paranoico ou se os
envolvidos é que não conseguem enxergar (ou aceitar) o absurdo semiótico das
coisas.
No exemplo mais recente, os caras da Unesp que usaram roupa
da Ku Klux Klan durante um trote. Ah, é só zuera. Pô, não é possível que tenham
tirado aquelas roupas do nada. Os veteranos do curso sabem muito bem o contexto
de onde foi tirado e o significado delas. Cientes disso, de duas uma: ou
queriam ridicularizar os KKK (essa sigla sim, fica engraçada em tempos de chat –
mas só no Brasil – e só na internet) ao deslocarem sua imagem
para uma brincadeira entre universitários, ou eles quiseram usar a imagem de
poder violento e a noção equivocada de superioridade daquele grupo de brancos
para submeter os calouros à tal brincadeira. Parece-me que a primeira opção não
é verdadeira.
Sendo mais provável a segunda, utiliza-se uma imagem medonha
e que, para uma sociedade com um mínimo de memória, alude a um trauma coletivo.
Mas ao transformá-la em mera brincadeira, deseja-se destituí-la de sua pesada
carga negativa. Isso só seria lógico em dois casos: se o trauma já estivesse
completamente superado na sociedade (sabemos que não está de forma alguma) ou
se a lembrança coletiva do evento traumático (a perseguição e execução de
negros nos EUA) já tivesse se rarefeito a tal ponto de não ser mais importante
- quiçá mesmo nunca tenha sido relevante para quem o está reencenando agora. Se
a lógica não se aplica nesse caso, então realmente a zoeira não tem limites e
aceita-se sem pudores o esvaziamento daquele símbolo anterior, tornando
irrelevante seu significado tradicional. Uma brincadeira é só uma brincadeira?
Um simples ato autoproclamado como despolitizado, ao tomar um símbolo de uma
agressiva opressão social (ou racial - apesar de que raça não existe) e
colocá-lo num contexto de zombaria não toma, assim, um efeito político, ainda
que involuntário?
Nesse caso, é notável a falta de respeito pela história da
violência aos negros, pois houve uma reencenação daquele passado, seguindo os
mais comuns rituais de memória coletiva que temos (sejam religiosos, como a
Paixão de Cristo no Natal, políticos, como a parada do 7 de setembro, ou
simplesmente econômicos, como a festa da uva, do milho ou do zebu na
cidadezinha mais próxima). Todas essas reencenações mantém vivas, de modo
distorcido ou não – aliás, a verdade histórica é factual? –, um evento do
passado e sua capacidade de reforçá-lo ou refutá-lo, mas nunca de ignorá-lo.
Da mesma forma, eu achava incômodo que os Anonymous mundo
afora, inclusive nas jornadas de junho de 2013 no Brasil, usassem
indiscriminadamente a máscara de Guy Fawkes como símbolo da desobediência e da
revolta, mas sem atentar para o fato de que o personagem histórico não era lá muito
democrático, muito menos anarquista. O símbolo criado pela máscara no 'V for
Vendetta' prevaleceu na memória da sociedade pop (mesmo porque talvez a maioria
esmagadora dos brasileiros nunca fosse ouvir falar de Fawkes, não fosse pela
apropriação da imagem de sua silhueta pelo filme e pela posterior reapropriação
pelo Anonymous). Mas uma vez que se populariza tal símbolo, fica fácil hoje em
dia descobrir sua origem. O que se faz depois com tal informação – qual o seu
significado anterior – é uma decisão, deliberada ou não.
Não me espanta que os manifestantes
#acordabrasil tenham escolhido a cor amarela para representar o seu sentimento
nacionalista (afinal, é a cor da camisa da seleção de futebol e torcer para o
time ou xingar a chefa de estado durante a copa é uma das maiores expressões de
patriotismo por aqui). Espanta-me, sim, a reação indiferente quando questionados
a respeito do fato de se usar, durante uma manifestação justamente contra a
corrupção, o uniforme da CBF, uma das instituições mais corruptas do país, que
usa uma paixão nacional como plataforma de enriquecimento para uma oligarquia.
Isso sem levar em conta que esses manifestantes pretendem ser os porta-vozes da
nação, como se tudo aquilo que eles reivindicam (além das obviedades
pró-educação e contra corrupção) fosse realmente pelo bem da nação como um todo
(incluindo aí todos os filhos da pátria, de todas as classes) e não o desejo de
um grupo mais ou menos restrito que por acaso é o público-alvo das redes de
comunicação, as quais, de forma inédita, participaram da divulgação e da
cobertura de uma manifestação. Por acaso, não vi na última semana nenhuma
menção de apoio desses amarelinhos aos professores da rede estadual que estão
em greve. E, na minha humilde inventividade, não vejo forma mais eficaz de
melhorar a educação do que aumentar os salários dos professores.
Recentemente, li para uma disciplina sobre Semântica e
Pragmática um trecho de 'Alice no País dos Espelhos', de Lewis Carroll, em que
o onipresente Humpty Dumpty discute com a, às vezes, irritante – pois quase
sempre bastante razoável – heroína. Ele insinua que a palavra "glória"
signifique um "argumento arrasador".
– Quando uso uma
palavra – disse Humpty Dumpty em tom
escarninho – ela significa exatamente
aquilo que eu quero que signifique... nem mais, nem menos.
– A questão – ponderou Alice – é saber se o senhor pode
fazer as palavras dizerem coisas diferentes.
– A questão – replicou Humpty Dumpty – é saber quem é que manda. É só isso.
É só amarelo. É só uma máscara. É só brincadeira. É só isso.
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