Resolveram enfim ignorar as mães, que galgavam árvores genealógicas e davam voltas em círculos sociais rastreando conhecidos em comum:
- Faz muito tempo?
- Dois meses.
- Isso tudo?
- É. Mas pelo menos não tive que operar. E você, futebol?
- Não, caí mesmo. Foi bem besta.
- E já vai tirar?
- Não, faz só duas semanas. Tenho que ver se vai precisar de cirurgia.
- Ai... Eu ia morrer de desespero.
- E você, o que foi?
- Acidente de moto numa descida. Com a batida fui parar longe. Eu até que machuquei pouco. O capacete partiu ao meio.
- Ai, isso é que é desespero. Pior é andar de muleta numa cidade só de colinas.
E, naquela tarde de garoa fina, continuaram conversando amenidades nada suaves que a situação sugeria, com otimistas palpites incertos baseados em casos similares de conhecidos, até ouvirem preguiçoso e longe um de seus nomes. Despediram-se com sorrisos e acenos, pois levantarem-se seria coisa complicada.
Após uma tardia consolidação do osso da perna devido a pouca ingestão de cálcio, um moroso restabelecimento pós-osteossíntese com demasiado repouso relativo e um involuntário enriquecimento colateral de vocabulário médico, voltaram a suas distantes rotinas normais.
Sentado um dia num bar com os achegados, pouco depois do reaprendizado de seus passos, esticou-se todo para comemorar a malemolência do fim de sua folga e, de supetão, levou uma pisadela na cicatriz ainda rosada na parte exposta menos morena de seu corpo. Num misto de fúria e dor lógica, porém não sentida, esbravejou impropriedades à garçonete que passava apressada por entre as mesas sobre o chão molhado de chuva. A moça desculpou-se com o imediatismo de um serviçal em um país subdesenvolvido, quando o protestante percebeu que se tratava da colega de banco da sala de espera da clínica.
O constrangimento foi rapidamente suspenso. O torpor, com a mesma intensidade a que eleva a raiva do agressor, intumesce também a amorosidade e a ternura. Perdões revertidos foram concedidos e mantiveram assim a tranqüilidade com que a tarde começara. Seguindo a primeira valiosa embriaguez e o esquecido cansaço de horas de trabalho, despediram-se, respectivamente, com exageradas palavras de carinho e repetidos agradecimentos impacientes.
Anos mais tarde, na festa de casamento de um antigo amigo, bailava um rápido arrasta-pé com sua prima, quando tropeçou num salto alto alheio e quase se projetou ao chão de cimento do salão da igreja. Na penumbra cheia de luzes em frenesi, custou-lhe reconhecê-la. Mais uma vez a satisfação de reatar uma amizade que, por falta de se regar, não brotou. Na música seguinte convidou-a para dançar, mas foi gentilmente rejeitado: estava casada e o marido era muito ciumento. Mirou-o, pareceu-lhe nada mais que um estulto mentecapto de riso fácil. Não se viram mais até o fim brusco do baile, interrompido por uma súbita tempestade. Por isso não puderam saudar a nova separação, para desapontamento de um e alívio da outra.
Passou-se um longo termo, em que sucessivas e crescentes chuvas cultivaram novas e inúmeras flores para seus buquês, seus jardins e suas praças; e, então, para seus féretros e seus túmulos, na necrópole da cidade.
E os dilúvios magníficos não cessavam. Vigoravam ininterruptamente, até a noite em que as nuvens despencaram não mais em gotas, porém em enxurradas inconseqüentes. A aluvião extrema converteu ruas em afluentes barrentos, sugando concreto, madeira e gente para o rio do vale. Tragédia sem precedentes. Uma nova Pompéia sepultada com lava hídrica fria.
Findado todo o pranto desesperado daquele céu, os primeiros raios de sol de um alvorecer sem vida iluminaram em meio à lama, ao pé de uma colina, dois restos de cadáveres amontoados. Sua renegada fíbula pôde finalmente sentir pressionar seu peso sobre a tíbia bem-quista, que, imóvel e inerte, insistia em recuar.
4 comentários:
Que bonito, Brunão! Lembra 4 Casamento e Um Funeral, mas com um final melhor!
Sorte ae com a fíbula.
Abraçao
Eita Senza!
Adorei...!!!
bjooo
ps: o mps tem mais palavras que o comentário em si...
massa?
não.
bom, mesmo.
=)
Que show esse... gostei!
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