quarta-feira, 22 de abril de 2009

Sobre o mineirês

publicado n'A Patada em 20 de outubro de 2003

Dizem que o mineiro come o fim das palavras. Eu vejo de outro modo: o mineiro economiza fonemas. É tudo uma questão de estilo de vida: para um povo modesto e "come-quieto", a simplicidade, acima de tudo, deve ser intrínseca ao cotidiano.

Nem todo fonema da Língua Portuguesa é realmente necessário. Pode ser belo, mas não estritamente indispensável. Vejamos o exemplo mais clássico: o diminutivo masculino. O sufixo "-im" em detrimento de "-inho" é perfeitamente inteligível. Assim, comemos um franguim, passeamos no parquim e a mulher compra um vestidim. Nenhum problema.

Vejamos agora a presença das vogais "i" e "u" em ditongos crescentes. Sua pronúncia é desnecessária em grande parte das palavras: "baixo", "caixa" e "peixe" podem ser entendidos sem o "i". Desse modo, se o mineiro disser que "o baxim viu um pôco do pexim que tava na caxa", qualquer um é capaz de entender.

Partamos então para um ponto ainda mais polêmico: a troca de de vogais. É sabido de estudos linguísticos que um brasileiro, dado seu desenvolvimento fonoaudiológico desde a infância, precisa se esforçar um pouco mais para emitir o som de vogais fechadas, como o "ê" e "ô", que de vogais abertas. No entanto, não é do feitio dos conterrâneos de Fernando Sabino e Guimarães Rosa substituir as formas fechadas de uma vogal simplesmente pelas abertas. O costume é trocar as sílabas átonas o "e" e o "o" fechados, respectivamente, por "i" e "u". Assim, ouve-se naturalmente na terra da melhor cachaça do mundo uma frase como "o minino cumeu o tumate e a bulacha*".

Percebam que não foi necessário transcrever a pronúncia do artigo "o", da conjunção "e" e das últimas vogais de "menino" e "tomate". Com exceção de alfabetizandos e alguns sulistas que herdaram da Europa uma pronúncia que segue estritamente a escrita, quase todo brasileiro já fala essas vogais normalmente do jeito mais fácil, fisiologicamente falando.

Outro item fundamental é o uso do "s" indicando plural em diversas palavras. Ora, se o plural já está explícito no artigo, torna-se redundante sua repetição no substantivo e quaisquer adjetivos relacionados. Dessa forma, ao invés de se dizer "Pegue as caixas brancas bonitinhas ali", basta apenas "Pegue as caxa branca bunitinha ali". O significado fica entendido, mesmo que esteja gramaticalmente errado.

Aproveitemos esse exemplo para chegar à questão da fluência da linguagem, já comum na última flor do Lácio, todavia mais contundente no mineirês. Quaisquer duas palavras consecutivas, sendo a primeira terminada e a segunda iniciada com vogal, são candidatas a unir-se numa só, sem dano à semântica da frase como um todo. Portanto, temos: "Pegas caxa branca bunitinhali".

Além dessa junção, a últimas sílabas das palavras, quando átonas, tendem a ser pronunciadas de forma extremamente suave, pois os vocábulos podem ser entendidas sem serem completamente pronunciadas, através do contexto. O exemplo máximo de aproveitamento fonético que me vem à cabeça é "pondions". Acompanhe a evolução: "ponto de ônibus" vira "pôntu di ônibus", que vira "pôn di ônbs", que vira "pondions". Alguns falantes mais experientes poderiam chegar até a "pondôns", mas isso devemos assumir como uma erudição extrema dessa linguagem.

Pode-se destacar também o papel dos verbos. Paulistanos têm o costume de enfatizar bastante as desinências modo-temporais do gerúndio. Ouvir um locutor que diz "einteindeindo" dói aos ouvidos de um humilde mineiro. Entenda-se que eu usei a palavra dói como um eufemismo. É uma dor que transcende à do parto. Machuca mesmo, quase explode o tímpano. A vontade do mineiro quando ouve "einteindeindo" é de ficar surdo. No entanto, o mineiro é sábio e entende que o paulistano foi criado assim e seria muito difícil mudar seu costume, assim como seria difícil explicar a um francês que nem todo mundo entende sua língua ou a um mineiro que é possível viver sem queijo (eu ainda duvido). Para o mineiro a desinência do gerúndio falado pode ser simplificada de "-ndo" para "-no". Assim, o mineiro tá "intendeno" tudo o que os outros estão "falano".

Passemos à conjugação de verbos. Basicamente, são necessárias apenas duas pessoas em um mesmo tempo de um modo verbal: a primeira e a segunda do singular. É facultativa a conjugação da primeira pessoa do plural. Desse modo, são aceitas as formas (já agregando os ensinamentos anteriores) "eu vô", "cê vai", "ele/ela vai", "nóis vai/vamo" e "es vai" (isso mesmo, "eles" vira "es"). Só recordando, isso é válido pelo intuito da simplicidade da linguagem.

Eis que chega um leitor mais perspicaz e desafiador e diz: "Peraí: se o mineiro sempre diminui a quantidade de fonemas, por que ele diz 'nóis' no lugar de 'nós'?". Minha resposta é: pronuncie as duas formas e perceba qual flui mais natural, mais fácil. Como em toda regra, aqui há uma exceção. Nem sempre um menor número de fonemas implica maior simplicidade de pronúncia.

Por fim, o mascote dos mineiros, ao lado do "uai": o "trem". A explicação aqui é pura e simplesmente uma economia de vocabulário. Por que usar mil e um substantivos, se o "trem" é capaz de substituir "esses trem tudo"?

Aproveitando a oportunidade, venho esclarecer que a piada em que o mineiro na plataforma da estação diz à esposa "Pega os trem que a coisa tá vindo" é errônea. A forma correta é "Pega os trem que o trem-de-ferro tá vindo". Se trem pode significar qualquer coisa, é mister haver uma expressão que defina o comboio e o diferencie dos demais trens. Entretanto, isso só é necessário para evitar ambigüidade. Como o trem-de-ferro é um substantivo, também pode ser simplesmente chamado de trem.

CONCLUSÂO

Não quero que o leitor culto sinta-se ofendido pela maneira simplória e regionalista com que o tema foi tratado. É claro que em ambientes formais o mineirês torna-se deselegante e pode fazer um erudito sentir-se tão mal quanto o mineiro que ouve um gerúndio paulistanês. E a linguagem escrita deve ser gramaticalmente correta, mesmo por que seria muito complicado (senão impossível) definir regras para se transcrever o mineirês segundo a gramática normativa.

Meu objetivo aqui é esclarecer o mineirês e tornar mais acessível o seu entendimento para os demais falantes da Língua Portuguesa (pelo menos a brasileira).

Se o leitor, mesmo assim, considerar o mineirês um linguajar chulo, chegue lá em Minas qualquer dia desses, prove de uma refeição típica (pão-de-queijo com café preto de tira-gosto, galinhada de almoço, queijo minas com doce-de-leite de sobremesa e uma pinguinha para arrematar), ouça os causos de algum velho, volte para casa e tenha a coragem de continuar pensando como antes.

*bolacha . S.f. Trem que vem num pacote em que se lê: "Biscoito recheado sabor chocolate"

2 comentários:

Unknown disse...

Sei que foi um comentário atrasadíssimo, mas só agora eu li...
Mineiro não pode mesmo viver sem queijo! Eu que o diga...
Abração, Brunowski

Caroline Siqueira disse...

Cara, seu texto é mto bom! mesmo! Bom, viver sem pão de queijo é mesmo um martírio, falo isso por experiência própria.
Descreveu mto bem o que a gente vive tentano explicar pros de fora, haha!

abraços!

PS: posso mostrar seu texto pros meus amigos?