segunda-feira, 4 de maio de 2009

Um dia em forma de música

publicado n'A Patada em 7 de novembro de 2003

Tic-tac, tic-tac, tic-tac… Fui acordando lentamente com aquele barulhinho. De súbito, começou uma musiquinha: "Passa, tempo, tic-tac, tic-tac, passa, hora…".

Eram sete da manhã de uma quinta-feira e, enquanto eu me despertava, me perguntava de onde viria aquela música. Foi quando percebi que meu despertador criara vida: tinha olhos, boca e dançava. "Chega logo, tic-tac, tic-tac e vai-te embora…" e meus livros começaram a balançar na prateleira, os lençóis levitaram e iniciaram um balé, me perseguindo e me chamando para bailar junto.

Saí correndo do meu quarto, ainda de pijama, quando apareceu na sala a faxineira, trajando uma roupa colorida cheia de lantejoulas e fazendo uma percussão com sua vassoura, xic-xec, toc-toc, e soltou a voz, entoando uma canção bizarra.

Eu não entendia nada do que estava acontecendo ali, todas aquelas melodias, aqueles sons. Será que eu estava enlouquecendo? Fugi para a rua, mas fui impedido por um amigo, "Por que a pressa? Te acalma, enche a alma, vamos nessa!". Nisso surgiu outro amigo, cantando outra estrofe, e mais um e outro e surgiram várias pessoas numa coreografia, cantando em coro, "o seu dia… será… feliiiz!" E sumiram, todos de uma vez.

Era isso mesmo que estava acontecendo? Em menos de meia hora, três músicas coreografadas, vários personagens, alguns fantasiosos, outros caricatos. Parecia um… não, não poderia ser. Sim, só podia ser isso! Meu Deus, que horror! Eu acordei e minha vida se transformara num musical! Eu odeio musicais! Aquele monte de gente cantarolando coisas sem nexo, todas alegres e fazendo piruetas quando deveriam simplesmente andar e falar.

Entretido nesses pensamentos, fui surpreendido por secretárias e office-boys pegando-me e carregando-me até o quarto, onde o despertador já voltara à sua forma original, estático e sem boca. As pessoas vestiram-me, "corre, corre, não demora, sai do porre, vai-te embora!", me deixaram no carro, abriram o portão, balançando as mãos em sinal de despedida e o carro saiu em direção ao trabalho.

No meio de tanta bagunça e idiotice, ao menos tive um momento sozinho. Eu não conseguia acreditar que aquilo estivesse acontecendo comigo. Poderia ser com a tia Luci, que vibrara quando "Chicago", aquele filme ridículo em que o Richard Gere aparece dançando de cueca samba-canção, ganhara o Oscar de melhor filme. Mas eu, eu tenho pavor a essa idéia absurda de encher o filme de músicas chatas, que começam com um barulhinho, o cantor vai falando baixinho, aumenta o volume e, por fim, grita lerdamente a estrofe pela trocentésima vez até estourar os tímpanos da audiência.

Eis que o som do carro se ligou de repente, "... and you bird can sing..." e, sem perceber, estava eu sorrindo e acompanhando a letra, berrando pela janela do carro, sendo seguido por milhares de pássaros verdes reluzentes. Tentei parar, mas não consegui. Percebi que eu havia sido tomado pela situação e estava também fora de controle.

Já não suportava mais aquilo e não encontrei outra solução a não ser me jogar da ponte com o carro. A barreira lateral segurou o automóvel, mas, com o impacto, fui arremessado pelo pára-brisa, ao som de uma orquestra de metais, indo cair no rio.

Afundando aos poucos, atordoado, não conseguia mais escutar nada. Já não ouvia mais nenhum daqueles acordes e timbres que me aterrorizavam. Calmamente, alcancei o solo, quase inconsciente. Naquele último momento, pude sentir o significado de paz e plenitude. No dia-a-dia corrido de uma cidade grande, a gente nunca se dá conta de que dar uma pausa em tudo de vez em quando é essencial para viver bem. Talvez os mais felizes dos seres sejam os monges budistas das montanhas do Tibete, isolados de tudo e de todos. Eles, sim, sabem o que é tranqüilidade e dão o devido valor a isso. Já era tarde para eu descobri-lo. Num último momento, em silêncio, meus olhos fecharam-se vagarosamente. Era o fim dos meus dias. No entanto eu iria embora feliz.

Foi então que chegou um peixe multicolorido, acompanhado de um conjunto de conchas tocando uma sinfonia.

*Baseado numa fobia de Daniel Anand

2 comentários:

Anand disse...

Já pensou? Eu ficaria louco mesmo. Quando alguém dá uma paradinha suspeita, já dá medo.

O único lugar realmente seguro são as caras de karaokê. Nunca tem karaokê em musicais.

Trevas mesmo seria não só estar num musical, mas sim num High School Musical.

Maria Lima disse...

hehe Adorei. Mas eu também adorei Chicago e odeio musicais.

Abraço