quarta-feira, 24 de março de 2010

Póstumo

publicado n'A Patada em 25 de fevereiro de 2004

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O que mais machuca perante a morte é a triste e desesperadora sensação de não ser mais possível matar as saudades do ente querido que se foi.

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Ah, se eu pudesse
uma última vez estar contigo
Bater um papo, jogar conversa fora
E saber como anda a tua vida

Ah, sim, eu queria
Dar-te um último grande abraço
E aproveitar mais um momento
Antes de tua precoce partida

Assim, hoje eu estaria
Muito menos desolado e arrependido
Por não acreditar que esses
Teus últimos dias seriam

A Si Deus acolhe
Todas as almas bondosas como a tua
E tão evidente chega a parecer
O teu papel entre nós

Há, sim, a certeza
De que ajudaste a salvar uma vida
Cuja difícil missão será, sozinha
Fazer crescer vosso jovem fruto

A simples passagem tua
Por nossas pequenas existências
Ficará marcada em nossas memórias
Como ferida aberta pelo destino

Assino, com muito carinho
Essa despretensiosa homenagem
Com uma lágrima no rosto
E uma imensa saudade no coração

E que Deus abençoe a todos nós.

Em memória de Celso Mendes dos Santos

Todo sofrimento tem seu fim

publicado n'A Patada em 2 de agosto de 2004

Ramstein está acostumado a ver rostos desesperados e aliviados. Diariamente, várias pessoas passam por seu escritório.

Atrás de grossas lentes, seus curiosos e levemente vesgos olhos perseguem os menores movimentos dos visitantes. A maioria chega cumprimentando-o com um solene "Bom dia!" e, a princípio, sente-se desconfortável em revelar seu real intuito em encontrá-lo, citando então pormenores da vida ou comentando o tempo. Às vezes, alguns vão até ali simplesmente para conversar e ver como anda a vida. Porém, Ramstein rapidamente percebe os casos em que a pressa da saudação e a aleatoriedade do assuntos escondem uma vontade imensa de se livrarem do que há de mais podre dentro deles. E ele tem total consciência disso.

Em geral, antes mesmo que Ramstein delicada e sutilmente peça para a pessoa seguir em frente e chegar ao motivo da visita, ela já se revela e desabafa seu sofrimento. Com bom humor, ele procura diminuir o constrangimento alheio, muitas vezes com sucesso.

Entretanto, ocasionamente o visitante vê-se obrigado a se conter e nem encontra palavras para expressar sua dor. Ramstein compreende a situação e procura abrir-lhe a porta para a solução. Muitos não percebem que há sempre, na verdade, um outro caminho, e que tal penitência não é necessária. É nesses casos que Ramstein fica mais satifeito em poder ajudar.

Depois de cada sessão, é evidente a diferença no semblante de quem passa por lá. Ao entrarem pelo corredor, Ramstein vê a tensão e mesmo o martírio estampado nas faces. Eles chegam, fecham a porta, sentam-se, respiram bem fundo, soltam-se, enquanto todo o inimaginável passa-lhes pela mente. Suspiros e gemidos permeiam o processo de libertação. Enfim, limpam-se da sujeira impregnada até a alma e despedem-se, sorridentes, satisfeitos e mais tranqüilos, para voltarem novamente no dia seguinte.

E Ramstein sorri. Sonhava em ser psiquiatra, mas trabalha na secretaria do laboratório de uma mineradora, onde ficam os dois únicos banheiros limpos do local.


Da desilusão

escrito em 2000, publicado n'A Patada em 23 de novembro de 2003

Fim de tudo, término do mundo
Vontade de sumir, desejo de desaparecer.

Afrodite enfurecera, virara Medusa,
Mirou o peito; pobre coração
Inocente, correspondeu ao olhar:
Petrificou-se.

Prefere agora a neve ao raio de sol
O breu à vela
O luto ao sorriso.

De nada serve chorar
Se adiantasse, de lágrimas seriam feitos
Os rios e lagos,
Somente chuva haveria, pranto dos céus.

Lamentos de santos e deuses
Soluços de anjos e ninfas
Só alegradas pelos acordes
Dos fios de mui poderosa harpa
Tocando envolventes baladas
Inebriando todos os sentidos e, aos poucos,
Lapidando novamente o imo
Flamejando-o, dando-lhe pulso, energia restauradora.

Mais uma vez a esperança,
A crença numa eventual generosidade do destino
Esse mesmo, de espírito ladino
Serelepe feito menino
Traiçoeiro tal qual a ação de um lupino
Deixando uma alma à deriva
Num mundo lupino, menino, ladino
Sozinha...