segunda-feira, 10 de março de 2008

Adaptação

Decidiu então enfrentar o mundo. Coisa de que tinha raiva era gente lamentando a própria desgraça, sem mesmo tentar resolver. Como se sofrer muito por si só fosse atestado de merecimento de sorte no futuro. Quem lamuriava torcia pela existência de uma lei universal da compensação. A maior parte dos problemas só existia porque ninguém resolvia. Culpa do governo, da mãe, do patrão, do destino, de Deus, de qualquer um, desde que fosse o outro e o queixoso não precisasse solucionar nada.

Ele não queria ser um desses, por isso estava certo de que conseguiria reverter a situação. Além do mais, seria temporário. Havia tantos que suplantavam dificuldades mais graves e permanentes e mantinham-se vivos. Certamente não encontrava exemplos à sua volta, porém sabia que existiam. Seria um destes vencedores, não um daqueles derrotados. Afinal, era um renitente, não um penitente.

Naturalmente duraria um período longo. Entretanto tinha confiança em que seu corpo acostumar-se-ia com o fato e, depois, condicionado, passaria a colaborar. O esforço e a coragem, esses sim, deveriam ser reconhecidos e louvados. A solidariedade alheia seria muita mais sincera e presente para os batalhadores.

Além disso, orgulhava-se deveras de sua independência. Optara por esse modo de vida, responsável por si mesmo e por mais ninguém, sem cobranças e sem justificativas. Não se renderia tão facilmente à condição de auxiliado. Principalmente porque todos os amigos e colegas tinham suas próprias vidas a guiar, então estaria sujeito não só à boa vontade de outrem, senão também a disponibilidades. Ou seja, a coincidências. Em última instância: passar os dias à mercê do destino. Deixaria de ser um sujeito para tornarem-no um objeto. Pior ainda: passivo na mão de um agente.

Sentia-se sobretudo saudável e apto a combater a negligência de uma aceitável inércia. O primeiro golpe, contudo, foi perceber que faltando-lhe um pé, perdia ainda duas mãos: impossível segurar muletas e outras coisas ao mesmo tempo. Tarefas simples como o desjejum tomavam um tempo muito maior - além de um esforço descomunal. Para o banho necessitava de novos procedimentos e ainda maior higiene. Seria uma boa idéia exercitar a expansão da bexiga, a fim de diminuir a freqüência de visitas ao toalete. Em suma, tentando aplicar no âmbito pessoal as lúdicas teorias organizacionais apreendidas no último emprego, naquela eventual crise sua rotina sofreria uma reengenharia, considerava-se flexível o suficiente e agiria proativamente para manter sua sinergia interna.

A cada instante, colecionava derrotas. Acabada a água do filtro, era incapaz de substituir o refil de vinte litros. Não poderia subir as escadas para utilizar computadores. O corpo exigia descansos constantes no calor tropical. Não conseguia se locomover em tempo hábil entre diferentes prédios. O suposto desânimo, todavia, era automaticamente convertido em motivação e em exercício de sua criatividade.

No meio de toda essa guerra pessoal, recebeu o evitado veredito do médico: era mister sujeitar-se imediatamente a uma cirurgia e ao repouso absoluto. Caso insistisse no crime, a pena seria no mínimo uma de diversas seqüelas listadas. Espírito humilhado, sensação de honra estuprada por um falo do destino canastrão, aquele mesmo em que não cria.

Agora, no conforto do seio da família, toma o anestésico antes do sono para suportar a violação de seu corpo e de sua alma.

Um comentário:

Lais de Queiroz disse...

Desde que o anestésico faça efeito...