quarta-feira, 20 de maio de 2009

escrito em 2000, publicado n'A Patada em 23 de novembro de 2003

A solução é fugir
largar tudo e ir embora
descuidar de quem te ignora
tomar um porre e morrer de cirrose
martirizar-se para que se goze
calar a boca fechada do mundo
talhar na pele um corte profundo
detonar tudo o que é dos ianques
desenhar flores nos tanques
levar uma criança ao parlamento
deliciar-se com o amargo do tormento
abrir uma porta para o nada
tocar roquenrou para uma fada
pular na lua até chegar ao sol
alisar tigre até virar caracol
psicografar um poema inerte
insistir no erro a fim de que acerte
rabiscar de negro o rubro do ocaso
mergulhar de cabeça num lago raso
achar graça na lágrima da viúva
deitar-se nu num ninho de saúva
esquecer-se de que se deve lembrar
lembrar-se de que se tem que parar
parar de crescer para deixar de perceber
que o feito não é perfeito como queria ver
e descobrir enfim que a solução
é insolúvel a quem é são
e que minha vida é a de um imbecil infantil continuando a acreditar
que Deus existe e que dará um jeito de acabar com o homem e nos salvar.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

A revelação

publicado n'A Patada em 28 de novembro de 2003

Eu tinha uns dezesseis anos e estava a discutir com alguns amigos qual a imagem mais antiga que guardávamos em nossa memória. Um desafio e tanto.

Alguns juravam que conseguiam se lembrar de imagens de quando tinham menos de dois anos, outros se lembravam do momento em que conseguiram andar pela primeira vez. Se fosse andar de bicicleta, tudo bem, mas com as próprias pernas? Fala sério! Ninguém estava para ganhar um jogo, era só para tentar conhecer os limites da mente humana. Essas deviam ser imagens induzidas, histórias que as tias contavam de quando eram bebê e o cérebro tratava de criar toda a ambientação. Por isso, tais depoimentos foram descartados, mesmo que a contragosto dos contadores de causos.

Alguns foram mais plausíveis, lembraram de um piquenique no parque, quando ainda não tinha a estátua da fonte. Aliás, não havia nem a fonte na época. Outro conseguiu captar o momento em que ganhara um autorama de Natal, achava que com cinco anos de idade. Puxa, que legal, todo garoto tinha ou queria um autorama naquela época. Uma das amigas lembrou-se da mudança para a cidade atual, quando tinha seis anos mais ou menos. Não conseguia recordar-se da situação como um todo, mas sim da malinha em que trouxera seus brinquedinhos e apetrechos de menina e de onde a colocou, num criado-mudo no canto de seu novo quarto.

Chegou então a minha vez. A minha mais antiga recordação era meio trágica. Acho que era por isso que eu me lembrava. Eu tinha um cachorrinho chamado Isnupe. Eu sabia que não se escrevia assim, aliás, eu nem sabia escrever na época da situação, mas, depois que aprendi, eu escrevia desse jeito. O Isnupe era um vira-lata, mas eu não gostava de que o chamassem assim, pois ele era muito leal e inteligente.

Um dia, eu estava andando numa avenida perto da minha casa, com o Isnupe amarrado numa correntinha. Minha mãe e uma tia dela vinham logo atrás. Não lembrava direito o motivo, mas a correia soltou-se da minha mão e o Isnupe saiu correndo para atravessar a rua. Nisso veio um ônibus e passou bem em cima do pobrezinho. Não sabia se eu tinha chorado, se tinha ficado triste, se não tinha sentido nada na hora. Não fazia idéia da minha reação. E a cena acabava ali.

Todo mundo chocado, a discussão terminou. Mudamos de assunto, falamos de outras coisas, depois assistimos a um filme na televisão e fomos embora.

Chegando em casa, encontrei minha mãe na cozinha e fui conversar com ela.

- Mãe, você se lembra do Isnupe, aquele cachorrinho que eu tinha?

- Qual, filho?

- O Isnupe, aquele cachorrinho, que era…

E expliquei-lhe toda a cena descrita para meus amigos. De repente, veio a bomba:

- Filho, você nunca teve um cachorrinho.

- Como não? Eu lembro d’ele morrer!

- Filho, preste atenção: nunca existiu um Isnupe, isso tudo que você me contou nunca aconteceu. Deve ter sido um sonho, ou algo assim.

Naquele momento, meu mundo desabou. Todo o meu pensamento racional, todos os princípios em que me baseava, tudo aquilo que eu acreditava ser o certo, já não se sustentava mais. Se a primeira imagem que eu tinha em minha memória não existia de fato, os dogmas e corolários que guiavam meus atos poderiam estar da mesma forma deturpados.

Ali, decidi realmente rever meus conceitos.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

versos livres e cinzas

escrito em 1999, publicado n'A Patada em 24 de outubro de 2003


Sob a lua lírica, crescente
mingua a alegria de amar
amaro desejo de tocar
e beijar a ninfa
que a outro pertence.

Antes fosse um outro qualquer
mas é justo;
injusto o coração
de encontro à razão
sofrimento pelo correto
erro do destino
joguete da vida
engano do cupido, esse estúpido:
                    tira essa venda dos olhos
                    e prevê os danos que irás causar
                    à alma de um mero sonhador
                    corroída escondido.

Ele sorri, tenta disfarçar
Os olhos, porém, se inundam
ao som de melodias-cicatrizes
jamais esquecidas.

Como dói sofrer calado!
Dor menor que se somada
às dores por todos os sós lamentadas.

                                                                            Que sejas tão feliz
                                                                            quanto seria eu
                                                                            em teu lugar
                                                                            E que a faças imensamente mais feliz
                                                                            do que poderia eu
                                                                            com meu esforço maior.


Silêncio, vou dormir.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Um dia em forma de música

publicado n'A Patada em 7 de novembro de 2003

Tic-tac, tic-tac, tic-tac… Fui acordando lentamente com aquele barulhinho. De súbito, começou uma musiquinha: "Passa, tempo, tic-tac, tic-tac, passa, hora…".

Eram sete da manhã de uma quinta-feira e, enquanto eu me despertava, me perguntava de onde viria aquela música. Foi quando percebi que meu despertador criara vida: tinha olhos, boca e dançava. "Chega logo, tic-tac, tic-tac e vai-te embora…" e meus livros começaram a balançar na prateleira, os lençóis levitaram e iniciaram um balé, me perseguindo e me chamando para bailar junto.

Saí correndo do meu quarto, ainda de pijama, quando apareceu na sala a faxineira, trajando uma roupa colorida cheia de lantejoulas e fazendo uma percussão com sua vassoura, xic-xec, toc-toc, e soltou a voz, entoando uma canção bizarra.

Eu não entendia nada do que estava acontecendo ali, todas aquelas melodias, aqueles sons. Será que eu estava enlouquecendo? Fugi para a rua, mas fui impedido por um amigo, "Por que a pressa? Te acalma, enche a alma, vamos nessa!". Nisso surgiu outro amigo, cantando outra estrofe, e mais um e outro e surgiram várias pessoas numa coreografia, cantando em coro, "o seu dia… será… feliiiz!" E sumiram, todos de uma vez.

Era isso mesmo que estava acontecendo? Em menos de meia hora, três músicas coreografadas, vários personagens, alguns fantasiosos, outros caricatos. Parecia um… não, não poderia ser. Sim, só podia ser isso! Meu Deus, que horror! Eu acordei e minha vida se transformara num musical! Eu odeio musicais! Aquele monte de gente cantarolando coisas sem nexo, todas alegres e fazendo piruetas quando deveriam simplesmente andar e falar.

Entretido nesses pensamentos, fui surpreendido por secretárias e office-boys pegando-me e carregando-me até o quarto, onde o despertador já voltara à sua forma original, estático e sem boca. As pessoas vestiram-me, "corre, corre, não demora, sai do porre, vai-te embora!", me deixaram no carro, abriram o portão, balançando as mãos em sinal de despedida e o carro saiu em direção ao trabalho.

No meio de tanta bagunça e idiotice, ao menos tive um momento sozinho. Eu não conseguia acreditar que aquilo estivesse acontecendo comigo. Poderia ser com a tia Luci, que vibrara quando "Chicago", aquele filme ridículo em que o Richard Gere aparece dançando de cueca samba-canção, ganhara o Oscar de melhor filme. Mas eu, eu tenho pavor a essa idéia absurda de encher o filme de músicas chatas, que começam com um barulhinho, o cantor vai falando baixinho, aumenta o volume e, por fim, grita lerdamente a estrofe pela trocentésima vez até estourar os tímpanos da audiência.

Eis que o som do carro se ligou de repente, "... and you bird can sing..." e, sem perceber, estava eu sorrindo e acompanhando a letra, berrando pela janela do carro, sendo seguido por milhares de pássaros verdes reluzentes. Tentei parar, mas não consegui. Percebi que eu havia sido tomado pela situação e estava também fora de controle.

Já não suportava mais aquilo e não encontrei outra solução a não ser me jogar da ponte com o carro. A barreira lateral segurou o automóvel, mas, com o impacto, fui arremessado pelo pára-brisa, ao som de uma orquestra de metais, indo cair no rio.

Afundando aos poucos, atordoado, não conseguia mais escutar nada. Já não ouvia mais nenhum daqueles acordes e timbres que me aterrorizavam. Calmamente, alcancei o solo, quase inconsciente. Naquele último momento, pude sentir o significado de paz e plenitude. No dia-a-dia corrido de uma cidade grande, a gente nunca se dá conta de que dar uma pausa em tudo de vez em quando é essencial para viver bem. Talvez os mais felizes dos seres sejam os monges budistas das montanhas do Tibete, isolados de tudo e de todos. Eles, sim, sabem o que é tranqüilidade e dão o devido valor a isso. Já era tarde para eu descobri-lo. Num último momento, em silêncio, meus olhos fecharam-se vagarosamente. Era o fim dos meus dias. No entanto eu iria embora feliz.

Foi então que chegou um peixe multicolorido, acompanhado de um conjunto de conchas tocando uma sinfonia.

*Baseado numa fobia de Daniel Anand