segunda-feira, 18 de maio de 2009

A revelação

publicado n'A Patada em 28 de novembro de 2003

Eu tinha uns dezesseis anos e estava a discutir com alguns amigos qual a imagem mais antiga que guardávamos em nossa memória. Um desafio e tanto.

Alguns juravam que conseguiam se lembrar de imagens de quando tinham menos de dois anos, outros se lembravam do momento em que conseguiram andar pela primeira vez. Se fosse andar de bicicleta, tudo bem, mas com as próprias pernas? Fala sério! Ninguém estava para ganhar um jogo, era só para tentar conhecer os limites da mente humana. Essas deviam ser imagens induzidas, histórias que as tias contavam de quando eram bebê e o cérebro tratava de criar toda a ambientação. Por isso, tais depoimentos foram descartados, mesmo que a contragosto dos contadores de causos.

Alguns foram mais plausíveis, lembraram de um piquenique no parque, quando ainda não tinha a estátua da fonte. Aliás, não havia nem a fonte na época. Outro conseguiu captar o momento em que ganhara um autorama de Natal, achava que com cinco anos de idade. Puxa, que legal, todo garoto tinha ou queria um autorama naquela época. Uma das amigas lembrou-se da mudança para a cidade atual, quando tinha seis anos mais ou menos. Não conseguia recordar-se da situação como um todo, mas sim da malinha em que trouxera seus brinquedinhos e apetrechos de menina e de onde a colocou, num criado-mudo no canto de seu novo quarto.

Chegou então a minha vez. A minha mais antiga recordação era meio trágica. Acho que era por isso que eu me lembrava. Eu tinha um cachorrinho chamado Isnupe. Eu sabia que não se escrevia assim, aliás, eu nem sabia escrever na época da situação, mas, depois que aprendi, eu escrevia desse jeito. O Isnupe era um vira-lata, mas eu não gostava de que o chamassem assim, pois ele era muito leal e inteligente.

Um dia, eu estava andando numa avenida perto da minha casa, com o Isnupe amarrado numa correntinha. Minha mãe e uma tia dela vinham logo atrás. Não lembrava direito o motivo, mas a correia soltou-se da minha mão e o Isnupe saiu correndo para atravessar a rua. Nisso veio um ônibus e passou bem em cima do pobrezinho. Não sabia se eu tinha chorado, se tinha ficado triste, se não tinha sentido nada na hora. Não fazia idéia da minha reação. E a cena acabava ali.

Todo mundo chocado, a discussão terminou. Mudamos de assunto, falamos de outras coisas, depois assistimos a um filme na televisão e fomos embora.

Chegando em casa, encontrei minha mãe na cozinha e fui conversar com ela.

- Mãe, você se lembra do Isnupe, aquele cachorrinho que eu tinha?

- Qual, filho?

- O Isnupe, aquele cachorrinho, que era…

E expliquei-lhe toda a cena descrita para meus amigos. De repente, veio a bomba:

- Filho, você nunca teve um cachorrinho.

- Como não? Eu lembro d’ele morrer!

- Filho, preste atenção: nunca existiu um Isnupe, isso tudo que você me contou nunca aconteceu. Deve ter sido um sonho, ou algo assim.

Naquele momento, meu mundo desabou. Todo o meu pensamento racional, todos os princípios em que me baseava, tudo aquilo que eu acreditava ser o certo, já não se sustentava mais. Se a primeira imagem que eu tinha em minha memória não existia de fato, os dogmas e corolários que guiavam meus atos poderiam estar da mesma forma deturpados.

Ali, decidi realmente rever meus conceitos.

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