sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Descrença

publicado n'A Patada em 21 de novembro de 2003


Com tanta desgraça no mundo, às 14h16 do dia 18 de novembro Teófilo parou de acreditar em Deus.

A partir de então, Teófilo deixou de escrever o referido nome com letra maiúscula. Passou também a usar artigo indefinido. Se na mitologia grega havia vários deuses, o mundo moderno não seria diferente, a não ser pelo fato de existirem mais religiões. Teófilo percebeu que o motivo dos maiores conflitos era simplesmente a crença em um deus. Um ser abstrato, dono da verdade, suprapoderoso. Se tolerante e possuidor de bondade infinita, não conseguia impedir seus súditos de se matarem. Quando exclusivista, não permitia a existência de outras crenças. E quando indiferente às demais religiões, não podia salvar seus seguidores. Sendo assim, Teófilo concluiu que não era possível existir um deus. Nenhum.

Às 13h20 desse dia, Teófilo soube de mais uma série de atentados suicidas, dessa vez na Turquia. Todo mundo perdeu a noção no berço das civilizações. Os motoristas-bomba esperavam os religiosos inimigos reunirem-se na hora da oração e explodiam-nos. Teófilo só ficaria mais estupefato se soubesse de um pedófilo que se trancasse numa creche numa quarta-feira à tarde.
No mesmo dia, às 13h26, o chefe de Teófilo o chamou para conversar. Explicou que a cultura da empresa mudara, mas que Teófilo não havia conseguido se adaptar. Mesmo porque ninguém avisara Teófilo de mudança alguma. Às 13h55 Teófilo apertou o botão descendente do elevador, sem se despedir de ninguém.

Às 20h34 de 16 de novembro Teófilo assistia estarrecido a uma notícia na televisão sobre um casal de namorados assassinados por um garoto crudelíssimo. Não fosse a brutalidade do crime, ainda colocariam a culpa nos próprios jovens, por não avisarem seus pais aonde iriam de verdade. Teófilo lembrou-se das 18h56 de uma sexta-feira, uns dez anos antes, quando consolava sua paixão depois uma briga dos sogros e decidiram fugir. Correram para uma praia deserta distante e lá Teófilo teria os momentos mais mágicos da sua vida, até resolverem voltar, às 6h12 do dia seguinte. Porque a garota estava com medo de cobras.

Às 19h13 de 19 de novembro Teófilo foi beijar sua noiva e ela desviou o rosto. Precisavam conversar. Teófilo ouviu que era um dos caras mais bacanas que ela conhecera, mas a magia acabara e o brilho de Teófilo ofuscara-se. Às 22h22 uma lágrima caiu do olho esquerdo de Teófilo, enquanto ouvia uma canção antiga e bebia a quinta cerveja no sofá de casa, ao lado do cachorro.

No dia 26 de novembro, ao sair de casa para ir à banca, às 10h48, um mendigo parou Teófilo na rua e pediu-lhe umas moedas. Teófilo só tinha o dinheiro para o jornal, mas resolveu entregar ao homem roto. Teófilo estava mal, mas aquela alma precisava ainda mais de ajuda.

-Deus lhe pague!

Teófilo sorriu da fiel inocência do mendigo e foi caminhar pelo bairro.

Às 10h57 Teófilo esbarrou numa moça de óculos e cabelos negros amarrados, com uma porção de papéis nas mãos, que caíram na calçada. Teófilo ajudou-a a recolher tudo e seus olhares se cruzaram. Teófilo tentou pensar em algo gentil e fatal para dizer, mas achou que não era um bom momento e simplesmente pediu desculpas. A moça sorriu, desculpou e quis Teófilo. Teófilo xingou-se por ser tão desastrado e seguiu seu caminho incerto.

Às 4h08 desse mesmo dia a gráfica imprimia na terceira página do jornal diário uma oferta de emprego para o perfil de Teófilo, com uma remuneração um pouco mais baixa que a do trabalho anterior, porém ainda compatível com suas necessidades. Às 7h02 um pacote do jornal chegou à banca da praça e o jornaleiro foi logo cortar as amarras. Sem querer, acabou rasgando o exemplar de cima.

Andando distraído pela praça, Teófilo passou em frente à banca. Olhou as capas de revistas e as primeiras páginas dos jornais e resolveu comprar um. Às 11h26 disse ao jornaleiro que iria levar. No entanto, lembrou-se de que havia doado as moedas ao andarilho e desistiu da compra. O jornaleiro, por sua vez, lembrou-se do jornal rasgado e ofereceu-o a Teófilo. Ele o tomou, analisou e decidiu não levar, pois não era certo. Resmungou por haver entregue os trocados ao mendigo.

Ao voltar para casa, Teófilo sentiu-se sozinho e teve saudades da mãe, que não via havia anos. Às 12h01, ao chegar à sua porta, o telefone tocava. Apressou-se, mas o telefone parou antes que Teófilo o alcançasse. Aproveitando o aparelho na mão, procurou o número de sua mãe e discou-o. Estava ocupado. Reclamou que ela ainda só ficava pendurada no telefone e não tentou novamente. Às 12h03, a mãe de Teófilo devolveu o telefone ao gancho e desistiu de procurar seu filho.

Depois desse momento, as coincidências deixaram de acontecer em sua vida. E assim continuou ele em sua existência, até seu último suspiro, sozinho, num quarto escuro e sujo, em uma hora qualquer de uma noite fria de chuva.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Roteiro de Entrevista

Esta semana uma aluna de Psicologia da Unesp de Bauru entrou em contato comigo - e, imagino, com diversos colegas da faculdade - para fazer uma entrevista, parte de sua pesquisa na área de orientação vocacional. Topei e achei algumas perguntas legais, pois se tratavam de reflexões a que me propus antes de decidir fazer Estudos Literários e logo depois que entrei no curso. Se naquela época eu tinha uma visão bem míope a respeito, hoje ainda preciso de um óculos com grau maior - quase nenhuma certeza. Pelo menos já venho pensando bastante à medida que leio novas opiniões - novas para mim, às vezes já bem antigas nos cânones. Então achei por bem colocar algumas das respostas aqui para, talvez, incitar alguma discussão.

Quais são as áreas de atuação do profissional [de Estudos Literários]? O que é exatamente faz o profissional formado em sua atuação?

O caminho mais comum é a carreira acadêmica: mestrado, doutorado e docência em faculdades de Letras e afins. Como não temos Licenciatura, não podemos lecionar no ensino médio e fundamental, mas nada impede que demos aula em cursinhos. Também podemos virar críticos literários, tradutores de obras literárias, redatores em jornais, enfim, não dá pra saber ainda para onde vai quem se forma em EL.


Como são as condições de trabalho, nesta profissão?

Conformo dito acima, ainda é incerto, mas provavelmente será a média dos profissionais da área de Humanas: muita dedicação ao trabalho, com baixa remuneração. A produção do intelectual no Brasil não se transforma em produto cultural rapidamente, por isso não é valorizada.


Quais seriam os problemas/desafios enfrentados pelos profissionais da área?

Além de baixos salários, a sociedade brasileira não dá valor a especialistas na área de Literatura. Assim como a pesquisadores de forma geral. A reputação é de que pesquisa não produz renda. No curto prazo, pode ser verdade, mas isso é uma falácia se considerarmos o valor cultural agregado ao longo dos anos. França, Inglaterra, Itália e Alemanha não teriam a sociedade organizada como hoje, não fossem os importantes intelectuais que surgiram ao longo do milênio.


Quais contribuições, em sua opinião, que esta profissão oferece para a sociedade?

Esta é uma questão complicadíssima. A função básica destes profissionais é ajudar os leitores a compreenderem melhor as obras literárias – atenção: ajudar a compreender, não explicar ou simplesmente interpretar uma obra. A compreensão de um texto depende da experiência pessoal e dos valores de cada indivíduo e o seu significado pode ser múltiplo.

Pelo que tenho observado, existem as pessoas que se interessam por Literatura e para elas o seu objetivo é, geralmente, trazer ao ser humano a experiência da humanidade, fazer com que imaginemos coisas que não nos aconteceram e não vão acontecer, mas que poderiam ser verdade; a Literatura pode ser encarada, ainda, como a História que não aconteceu. Isso tudo faz com que as pessoas compreendam melhor o que é diferente, analisam outros pontos de vista e, assim, se tornem mais tolerantes, mais cultas, mais solidárias e também faz com que pensem nos problemas individuais e em sociedade. Leva problemas reais para o campo imaginário, onde encontra soluções, para trazê-las de volta ao mundo em que vivemos. Ou seja, a Literatura tem a capacidade de melhorar o indivíduo através da experiência literária.

No entanto, aqueles que não gostam da Literatura em geral, obviamente, não lêem a respeito; então de nada adiantam livros e livros que expliquem o valor da Literatura. Este é o grande desafio e a grande contribuição que profissionais de nossa área: fazer do brasileiro um leitor cotidiano para a evolução individual que leva à evolução da nação.


Você imagina que a profissão será diferente no futuro? Por quê?

Depende da evolução da educação no Brasil. Não só nas escolas, mas em casa também. Na casa de meus pais havia menos de vinte livros na estante. Li quase todos, só não li alguns que me pareciam doutrinadores. Eu achava bonito, mas em casa não havia a cultura da leitura. Nem da música. Dos meus pais aprendi que deveria estudar para ficar inteligente e que deveria me esforçar para alcançar meus objetivos, mas o repertório mesmo veio de fora, da escola e dos amigos. É um pacto conjunto para a evolução. Depois que as pessoas se convencerem do valor da pesquisa não só em ciência, mas também em idéias, a profissão do “estudioso literário” poderá ter uma reputação melhor e mais pessoas poderão procurá-lo. Mas devo confessar que, pelas políticas que os governos vêm adotando, em prol do desenvolvimento produtivo e econômico, sem investimento em educação, sem perspectiva de mudança, sou bem cético. Corintiano, sabe? Sei que o time provavelmente deve perder, mas ainda torço pra ganhar.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Só não sabe quem não quer

E, triunfantes, bradaram as palmeiras imperiais: "De agora em diante, nenhum ser vivo nesta Terra padecerá da escuridão; o sol, nosso grande astro, nascerá para todos. É injusto que somente as copas de grandes árvores, os vastos gramados e os animais que se movimentam tenham seu quinhão de calor e luz. Todos terão acesso a essa dádiva divina, por mais tempo cada dia, por mais dias o ano inteiro."

Bichos, plantas e algas regozijaram-se ante a promessa da distribuição igualitária da riqueza maior, o desfecho feliz para todo um bioma. O sol preocupou-se levemente, mas entendeu que era seu dever. Gramíneas soturnas, sem reação, deixaram-se aquecer, até ressecarem. Musgos tornaram-se macios tapetes secos. Damas-da-noite cheiravam a mato decomposto. Minhocas confundiam-se ao feno do terreno. Sapos descoaxavam e corujas chacoalhavam trépidas na aerodinâmica dos besouros.

Os morcegos, sempre indiferentes e marginais, aproveitaram as novas frequentes visitas suculentas às cavernas e não mais precisaram externar-se. Nunca fizeram questão de ver o nitidamente claro e belo mundo tropical paradisíaco que reinava - louvado seja Deus - em todo aquele mundo igualitário e radiante.


quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Aparte

Foram apresentados. Tiveram ali seu primeiro simpósio em meio aos convivas. Ele convidou-a à dança. Ela superou a recusa instintiva e cedeu. Os pés embriagados entraram em compasso e desencadearam o toque primogênito dos lábios e das papilas. Ele avançou, ela recuou.

Trocaram olhares, sorrisos e contatos. No enlace seguinte, o encaixe perfeitamente complementar, o suor da satisfação mútua e a percepção de que o intento não seria em vão. Ele a procurava, ela deixava-se encontrar. Descobriram interesses em comum e isso os tornava mais íntimos.

Ele mostrou-lhe a incomum hibridez de seu mundo múltiplo e ela acolheu-o dengosamente em seu lar aconchegante. Concederam reciprocamente os vistos de livre passagem pela fronteira entre suas vidas. Estradas longas de asfalto e de terra, com destinos certos ou nem tanto. Até que ele tomou para si só a direção. Na busca por novos caminhos, caía sempre nos mesmos. A neblina de vias conhecidas e previsíveis embaralhava suas vistas e não o deixavam enxergar além. A melodia soava monótona, de um tom rosa cujo aroma evitava aspirar para não deixar-se envolver.

Ele ávido por novidade, ela desejosa de atenção, por mínima que fosse. No vácuo do sentimento esgotado surgiu um degradante campo magnético: quanto mais ela esforçava-se em reaproximar-se, mais levianamente reagia ele com subterfúgios. Ela o chamava para seu cotidiano e ele fugia para imprevistos impulsivos de devaneios coletivos. Ocultava e assim alimentava seu fastio. Mesmo que sentisse, ela julgaria inverossímil. Com involuntária displicência, manteve-se discreta e paciente. Semi-inconsciente da alienação, palestrava segurando com dedos fortes a mão que sorrateiramente esgueirava-se; confabulava procurando o respaldo de um olhar que, desfocado, esvaía-se.

Sufocado pela inércia da dissimulação mal representada, veio final e subitamente à tona com a implacável e inevitável sinceridade. Acumulou coragem para superar qualquer inação frente ao sofrimento tão simultaneamente alheio e próprio. Rudes palavras em prol do esclarecimento e da resignação para um futuro menos amargo. Ele, aparentemente impassível e internamente agoniado; ela, interrogando com lágrimas a desditosa notícia.

Dois dias para recuperar o fôlego e uma nova conversa para consumar o infortúnio de um crime sem culpados nem réus. E assim a humanidade segue acumulando mais um caso em seu ocaso. O aborto, involuntário ou não: a sutil morte prematura do embrião de um amor desconstruído.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Picolé de morango

publicado n'A Patada em 21 de janeiro de 2004

Eu estava no parque, ao lado de meu carrinho de picolé, contemplando uma rara tarde ensolarada de céu limpo. Um daqueles dias em que dá vontade de ir à praia, sentar à sombra de um quiosque, apreciar uma cervejinha bem gelada, soprar a nuca suada da esposa, só pra ela se Justificararrepiar e a gente dar risada.

- Tem picolé de molango?

Virei em direção à voz doce e suave e encontrei a imagem da inocência, uma linda garotinha de uns cinco anos, negrinha, com o cabelo pixaim adornado em diversas trancinhas cheias de miçangas. O olhar ansioso pela guloseima me fitava, exigindo a resposta o quanto antes.

- Tem sim, princesinha, toma!

Enquanto a mãe me pagava, a criança tentava em vão abrir, rasgar com unhas e dentes o último empecilho para chegar ao picolé, a embalagem plástica, que insistia em ficar ali, adiando a alegria das papilas gustativas da menina. A mãe a ajudou e foram andando em direção ao campinho de areia, onde as crianças podiam se divertir sob os olhares das genitoras.

Não pude deixar de continuar a observar aquela criaturinha. Ao chegarem à pracinha de brinquedos, a menina percebeu que um guri, loirinho, de olhos claros, mais ou menos da sua idade, não tirava o olho de seu picolé. Receosa entre deixar de aproveitá-lo ao máximo e ver o menino com vontade, decidiu-se, silenciosamente, por oferecer-lhe um pedaço, levando-o rumo à boca do desconhecido novo amigo.

Eu queria, naquele momento, ter uma câmera fotográfica, ou mesmo ter o dom de pintar, desenhar, qualquer coisa de modo a gravar a cena e repassá-la ao mundo inteiro, para esse bando de cidadãos honestos, que trabalham dia e noite e voltam para o lar, o claustro diário, acompanham o telejornal e desejam a morte dos ladrões cruéis, que tiram a vida de outros semelhantes cidadãos honestos. Algo doce e sutil o suficiente para talhar uma ferida profunda no egoísmo cotidiano das pessoas. Mas a situação era por demais tenra e eu não conseguiria de forma alguma ter algum sentimento vil.

A solidariedade entre as duas crianças, tão diferentes, mas tão iguais, me tocou. Eu quis abraçá-las bem forte, como se fossem meus netos.

O garotinho sorriu, agradecido, mas antes que ele pudesse aceitar, sua mãe percebeu o que acontecia e puxou-o subitamente para o seu lado, dando-lhe uma bronca e um tapa no bumbum. Do outro lado, a menina assistia estarrecida ao acontecimento e imediatamente levou um puxão de sua mãe, querendo protegê-la do menino que queria roubar o picolé da filha - foi o que ela pensou. No solavanco, o picolé soltou-se da mão da menina e voou, girando no ar, até cair no chão de areia. As duas crianças acompanharam a queda como pai vendo o filho saltar da janela de um edifício. Os olhos de ambos se encheram de lágrimas, porém nenhum chorou de verdade.

As mães começaram a trocar ofensas, dizendo coisas feias perto das crianças, sem o menor pudor. Elas, réus inocentes de um crime cometido por advogados e promotores, ouviam assustadas, em silêncio. A menina começou a chorar, o menino olhou com pena.

Inconformado, peguei dois picolés de morango de meu carrinho e fui andando em direção a eles, esperançoso de acabar com a confusão e dar algum conforto aos pequeninos. Estes me avistaram e foram, aos poucos, engolindo o soluço. Eu, já próximo, podia sentir a sua alegria me contagiando, quando as mães, irritadas, pegaram seus respectivos filhos e tomaram caminhos opostos. As crianças ainda me olhavam, uma de cada lado, com uma expressão de quem esteve perto da glória e não a alcançou. Em seus rostos, uma tristezinha por algo que não precisava ter acontecido.

Eu parei no meio do caminho, estático, sem saber o que pensar, nem o que fazer, com dois picolés de morango derretendo em minhas mãos e escorrendo pelos cotovelos. Até alguém gritar do carrinho:

- Ô, picolezeiro, dá pra vir atender logo?

terça-feira, 16 de junho de 2009

Entrelinhas de Luther King

escrito em 2000, publicado n'A Patada em 10 de dezembro de 2003

Um dia…
Jovens aprenderão palavras que não irão entender.
Irão apenas adicioná-las à sua gama de definições.
Crianças da Índia perguntarão:
O que é fome?
É algo parecido com depressão?
Crianças do Alabama perguntarão:
O que é segregação racial?
É o mesmo que solidão urbana?
Crianças de Hiroshima perguntarão:
O que é bomba atômica?
Tem relação com suicídio coletivo?
Crianças nas escolas perguntarão:
O que é guerra?
Tem a ver com extinção de espécies?
Tu irás responder-lhes,
com um soluço de saudade.
Dirás a elas,
escondendo lágrimas nos olhos:
Tais palavras não são mais usadas,
Assim como diligências, navios negreiros ou escravidão
Sapiência, fé ou emoção
Amor, amizade -
Palavras que perderam o sentido.
Cortaram o fio da sensibilidade e do companheirismo.
Por isso elas foram – todas – removidas dos dicionários.

………………………………………………………………………………

One Day…
Youngsters will learn words they will not understand.
Children from India will ask:
What is hunger?
Children from Alabama will ask:
What is racial segregation?
Children from Hiroshima will ask:
What is the atomic bomb?
Children at school will ask:
What is war?
You will answer them.
You will tell them:
Those words are not used any more,
Like stagecoaches, galleys, or slavery -
Words no longer meaningful.
That is why they have been removed from dictionaries.

Martin Luther King, Jr.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

escrito em 2000, publicado n'A Patada em 23 de novembro de 2003

A solução é fugir
largar tudo e ir embora
descuidar de quem te ignora
tomar um porre e morrer de cirrose
martirizar-se para que se goze
calar a boca fechada do mundo
talhar na pele um corte profundo
detonar tudo o que é dos ianques
desenhar flores nos tanques
levar uma criança ao parlamento
deliciar-se com o amargo do tormento
abrir uma porta para o nada
tocar roquenrou para uma fada
pular na lua até chegar ao sol
alisar tigre até virar caracol
psicografar um poema inerte
insistir no erro a fim de que acerte
rabiscar de negro o rubro do ocaso
mergulhar de cabeça num lago raso
achar graça na lágrima da viúva
deitar-se nu num ninho de saúva
esquecer-se de que se deve lembrar
lembrar-se de que se tem que parar
parar de crescer para deixar de perceber
que o feito não é perfeito como queria ver
e descobrir enfim que a solução
é insolúvel a quem é são
e que minha vida é a de um imbecil infantil continuando a acreditar
que Deus existe e que dará um jeito de acabar com o homem e nos salvar.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

A revelação

publicado n'A Patada em 28 de novembro de 2003

Eu tinha uns dezesseis anos e estava a discutir com alguns amigos qual a imagem mais antiga que guardávamos em nossa memória. Um desafio e tanto.

Alguns juravam que conseguiam se lembrar de imagens de quando tinham menos de dois anos, outros se lembravam do momento em que conseguiram andar pela primeira vez. Se fosse andar de bicicleta, tudo bem, mas com as próprias pernas? Fala sério! Ninguém estava para ganhar um jogo, era só para tentar conhecer os limites da mente humana. Essas deviam ser imagens induzidas, histórias que as tias contavam de quando eram bebê e o cérebro tratava de criar toda a ambientação. Por isso, tais depoimentos foram descartados, mesmo que a contragosto dos contadores de causos.

Alguns foram mais plausíveis, lembraram de um piquenique no parque, quando ainda não tinha a estátua da fonte. Aliás, não havia nem a fonte na época. Outro conseguiu captar o momento em que ganhara um autorama de Natal, achava que com cinco anos de idade. Puxa, que legal, todo garoto tinha ou queria um autorama naquela época. Uma das amigas lembrou-se da mudança para a cidade atual, quando tinha seis anos mais ou menos. Não conseguia recordar-se da situação como um todo, mas sim da malinha em que trouxera seus brinquedinhos e apetrechos de menina e de onde a colocou, num criado-mudo no canto de seu novo quarto.

Chegou então a minha vez. A minha mais antiga recordação era meio trágica. Acho que era por isso que eu me lembrava. Eu tinha um cachorrinho chamado Isnupe. Eu sabia que não se escrevia assim, aliás, eu nem sabia escrever na época da situação, mas, depois que aprendi, eu escrevia desse jeito. O Isnupe era um vira-lata, mas eu não gostava de que o chamassem assim, pois ele era muito leal e inteligente.

Um dia, eu estava andando numa avenida perto da minha casa, com o Isnupe amarrado numa correntinha. Minha mãe e uma tia dela vinham logo atrás. Não lembrava direito o motivo, mas a correia soltou-se da minha mão e o Isnupe saiu correndo para atravessar a rua. Nisso veio um ônibus e passou bem em cima do pobrezinho. Não sabia se eu tinha chorado, se tinha ficado triste, se não tinha sentido nada na hora. Não fazia idéia da minha reação. E a cena acabava ali.

Todo mundo chocado, a discussão terminou. Mudamos de assunto, falamos de outras coisas, depois assistimos a um filme na televisão e fomos embora.

Chegando em casa, encontrei minha mãe na cozinha e fui conversar com ela.

- Mãe, você se lembra do Isnupe, aquele cachorrinho que eu tinha?

- Qual, filho?

- O Isnupe, aquele cachorrinho, que era…

E expliquei-lhe toda a cena descrita para meus amigos. De repente, veio a bomba:

- Filho, você nunca teve um cachorrinho.

- Como não? Eu lembro d’ele morrer!

- Filho, preste atenção: nunca existiu um Isnupe, isso tudo que você me contou nunca aconteceu. Deve ter sido um sonho, ou algo assim.

Naquele momento, meu mundo desabou. Todo o meu pensamento racional, todos os princípios em que me baseava, tudo aquilo que eu acreditava ser o certo, já não se sustentava mais. Se a primeira imagem que eu tinha em minha memória não existia de fato, os dogmas e corolários que guiavam meus atos poderiam estar da mesma forma deturpados.

Ali, decidi realmente rever meus conceitos.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

versos livres e cinzas

escrito em 1999, publicado n'A Patada em 24 de outubro de 2003


Sob a lua lírica, crescente
mingua a alegria de amar
amaro desejo de tocar
e beijar a ninfa
que a outro pertence.

Antes fosse um outro qualquer
mas é justo;
injusto o coração
de encontro à razão
sofrimento pelo correto
erro do destino
joguete da vida
engano do cupido, esse estúpido:
                    tira essa venda dos olhos
                    e prevê os danos que irás causar
                    à alma de um mero sonhador
                    corroída escondido.

Ele sorri, tenta disfarçar
Os olhos, porém, se inundam
ao som de melodias-cicatrizes
jamais esquecidas.

Como dói sofrer calado!
Dor menor que se somada
às dores por todos os sós lamentadas.

                                                                            Que sejas tão feliz
                                                                            quanto seria eu
                                                                            em teu lugar
                                                                            E que a faças imensamente mais feliz
                                                                            do que poderia eu
                                                                            com meu esforço maior.


Silêncio, vou dormir.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Um dia em forma de música

publicado n'A Patada em 7 de novembro de 2003

Tic-tac, tic-tac, tic-tac… Fui acordando lentamente com aquele barulhinho. De súbito, começou uma musiquinha: "Passa, tempo, tic-tac, tic-tac, passa, hora…".

Eram sete da manhã de uma quinta-feira e, enquanto eu me despertava, me perguntava de onde viria aquela música. Foi quando percebi que meu despertador criara vida: tinha olhos, boca e dançava. "Chega logo, tic-tac, tic-tac e vai-te embora…" e meus livros começaram a balançar na prateleira, os lençóis levitaram e iniciaram um balé, me perseguindo e me chamando para bailar junto.

Saí correndo do meu quarto, ainda de pijama, quando apareceu na sala a faxineira, trajando uma roupa colorida cheia de lantejoulas e fazendo uma percussão com sua vassoura, xic-xec, toc-toc, e soltou a voz, entoando uma canção bizarra.

Eu não entendia nada do que estava acontecendo ali, todas aquelas melodias, aqueles sons. Será que eu estava enlouquecendo? Fugi para a rua, mas fui impedido por um amigo, "Por que a pressa? Te acalma, enche a alma, vamos nessa!". Nisso surgiu outro amigo, cantando outra estrofe, e mais um e outro e surgiram várias pessoas numa coreografia, cantando em coro, "o seu dia… será… feliiiz!" E sumiram, todos de uma vez.

Era isso mesmo que estava acontecendo? Em menos de meia hora, três músicas coreografadas, vários personagens, alguns fantasiosos, outros caricatos. Parecia um… não, não poderia ser. Sim, só podia ser isso! Meu Deus, que horror! Eu acordei e minha vida se transformara num musical! Eu odeio musicais! Aquele monte de gente cantarolando coisas sem nexo, todas alegres e fazendo piruetas quando deveriam simplesmente andar e falar.

Entretido nesses pensamentos, fui surpreendido por secretárias e office-boys pegando-me e carregando-me até o quarto, onde o despertador já voltara à sua forma original, estático e sem boca. As pessoas vestiram-me, "corre, corre, não demora, sai do porre, vai-te embora!", me deixaram no carro, abriram o portão, balançando as mãos em sinal de despedida e o carro saiu em direção ao trabalho.

No meio de tanta bagunça e idiotice, ao menos tive um momento sozinho. Eu não conseguia acreditar que aquilo estivesse acontecendo comigo. Poderia ser com a tia Luci, que vibrara quando "Chicago", aquele filme ridículo em que o Richard Gere aparece dançando de cueca samba-canção, ganhara o Oscar de melhor filme. Mas eu, eu tenho pavor a essa idéia absurda de encher o filme de músicas chatas, que começam com um barulhinho, o cantor vai falando baixinho, aumenta o volume e, por fim, grita lerdamente a estrofe pela trocentésima vez até estourar os tímpanos da audiência.

Eis que o som do carro se ligou de repente, "... and you bird can sing..." e, sem perceber, estava eu sorrindo e acompanhando a letra, berrando pela janela do carro, sendo seguido por milhares de pássaros verdes reluzentes. Tentei parar, mas não consegui. Percebi que eu havia sido tomado pela situação e estava também fora de controle.

Já não suportava mais aquilo e não encontrei outra solução a não ser me jogar da ponte com o carro. A barreira lateral segurou o automóvel, mas, com o impacto, fui arremessado pelo pára-brisa, ao som de uma orquestra de metais, indo cair no rio.

Afundando aos poucos, atordoado, não conseguia mais escutar nada. Já não ouvia mais nenhum daqueles acordes e timbres que me aterrorizavam. Calmamente, alcancei o solo, quase inconsciente. Naquele último momento, pude sentir o significado de paz e plenitude. No dia-a-dia corrido de uma cidade grande, a gente nunca se dá conta de que dar uma pausa em tudo de vez em quando é essencial para viver bem. Talvez os mais felizes dos seres sejam os monges budistas das montanhas do Tibete, isolados de tudo e de todos. Eles, sim, sabem o que é tranqüilidade e dão o devido valor a isso. Já era tarde para eu descobri-lo. Num último momento, em silêncio, meus olhos fecharam-se vagarosamente. Era o fim dos meus dias. No entanto eu iria embora feliz.

Foi então que chegou um peixe multicolorido, acompanhado de um conjunto de conchas tocando uma sinfonia.

*Baseado numa fobia de Daniel Anand

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Sobre o mineirês

publicado n'A Patada em 20 de outubro de 2003

Dizem que o mineiro come o fim das palavras. Eu vejo de outro modo: o mineiro economiza fonemas. É tudo uma questão de estilo de vida: para um povo modesto e "come-quieto", a simplicidade, acima de tudo, deve ser intrínseca ao cotidiano.

Nem todo fonema da Língua Portuguesa é realmente necessário. Pode ser belo, mas não estritamente indispensável. Vejamos o exemplo mais clássico: o diminutivo masculino. O sufixo "-im" em detrimento de "-inho" é perfeitamente inteligível. Assim, comemos um franguim, passeamos no parquim e a mulher compra um vestidim. Nenhum problema.

Vejamos agora a presença das vogais "i" e "u" em ditongos crescentes. Sua pronúncia é desnecessária em grande parte das palavras: "baixo", "caixa" e "peixe" podem ser entendidos sem o "i". Desse modo, se o mineiro disser que "o baxim viu um pôco do pexim que tava na caxa", qualquer um é capaz de entender.

Partamos então para um ponto ainda mais polêmico: a troca de de vogais. É sabido de estudos linguísticos que um brasileiro, dado seu desenvolvimento fonoaudiológico desde a infância, precisa se esforçar um pouco mais para emitir o som de vogais fechadas, como o "ê" e "ô", que de vogais abertas. No entanto, não é do feitio dos conterrâneos de Fernando Sabino e Guimarães Rosa substituir as formas fechadas de uma vogal simplesmente pelas abertas. O costume é trocar as sílabas átonas o "e" e o "o" fechados, respectivamente, por "i" e "u". Assim, ouve-se naturalmente na terra da melhor cachaça do mundo uma frase como "o minino cumeu o tumate e a bulacha*".

Percebam que não foi necessário transcrever a pronúncia do artigo "o", da conjunção "e" e das últimas vogais de "menino" e "tomate". Com exceção de alfabetizandos e alguns sulistas que herdaram da Europa uma pronúncia que segue estritamente a escrita, quase todo brasileiro já fala essas vogais normalmente do jeito mais fácil, fisiologicamente falando.

Outro item fundamental é o uso do "s" indicando plural em diversas palavras. Ora, se o plural já está explícito no artigo, torna-se redundante sua repetição no substantivo e quaisquer adjetivos relacionados. Dessa forma, ao invés de se dizer "Pegue as caixas brancas bonitinhas ali", basta apenas "Pegue as caxa branca bunitinha ali". O significado fica entendido, mesmo que esteja gramaticalmente errado.

Aproveitemos esse exemplo para chegar à questão da fluência da linguagem, já comum na última flor do Lácio, todavia mais contundente no mineirês. Quaisquer duas palavras consecutivas, sendo a primeira terminada e a segunda iniciada com vogal, são candidatas a unir-se numa só, sem dano à semântica da frase como um todo. Portanto, temos: "Pegas caxa branca bunitinhali".

Além dessa junção, a últimas sílabas das palavras, quando átonas, tendem a ser pronunciadas de forma extremamente suave, pois os vocábulos podem ser entendidas sem serem completamente pronunciadas, através do contexto. O exemplo máximo de aproveitamento fonético que me vem à cabeça é "pondions". Acompanhe a evolução: "ponto de ônibus" vira "pôntu di ônibus", que vira "pôn di ônbs", que vira "pondions". Alguns falantes mais experientes poderiam chegar até a "pondôns", mas isso devemos assumir como uma erudição extrema dessa linguagem.

Pode-se destacar também o papel dos verbos. Paulistanos têm o costume de enfatizar bastante as desinências modo-temporais do gerúndio. Ouvir um locutor que diz "einteindeindo" dói aos ouvidos de um humilde mineiro. Entenda-se que eu usei a palavra dói como um eufemismo. É uma dor que transcende à do parto. Machuca mesmo, quase explode o tímpano. A vontade do mineiro quando ouve "einteindeindo" é de ficar surdo. No entanto, o mineiro é sábio e entende que o paulistano foi criado assim e seria muito difícil mudar seu costume, assim como seria difícil explicar a um francês que nem todo mundo entende sua língua ou a um mineiro que é possível viver sem queijo (eu ainda duvido). Para o mineiro a desinência do gerúndio falado pode ser simplificada de "-ndo" para "-no". Assim, o mineiro tá "intendeno" tudo o que os outros estão "falano".

Passemos à conjugação de verbos. Basicamente, são necessárias apenas duas pessoas em um mesmo tempo de um modo verbal: a primeira e a segunda do singular. É facultativa a conjugação da primeira pessoa do plural. Desse modo, são aceitas as formas (já agregando os ensinamentos anteriores) "eu vô", "cê vai", "ele/ela vai", "nóis vai/vamo" e "es vai" (isso mesmo, "eles" vira "es"). Só recordando, isso é válido pelo intuito da simplicidade da linguagem.

Eis que chega um leitor mais perspicaz e desafiador e diz: "Peraí: se o mineiro sempre diminui a quantidade de fonemas, por que ele diz 'nóis' no lugar de 'nós'?". Minha resposta é: pronuncie as duas formas e perceba qual flui mais natural, mais fácil. Como em toda regra, aqui há uma exceção. Nem sempre um menor número de fonemas implica maior simplicidade de pronúncia.

Por fim, o mascote dos mineiros, ao lado do "uai": o "trem". A explicação aqui é pura e simplesmente uma economia de vocabulário. Por que usar mil e um substantivos, se o "trem" é capaz de substituir "esses trem tudo"?

Aproveitando a oportunidade, venho esclarecer que a piada em que o mineiro na plataforma da estação diz à esposa "Pega os trem que a coisa tá vindo" é errônea. A forma correta é "Pega os trem que o trem-de-ferro tá vindo". Se trem pode significar qualquer coisa, é mister haver uma expressão que defina o comboio e o diferencie dos demais trens. Entretanto, isso só é necessário para evitar ambigüidade. Como o trem-de-ferro é um substantivo, também pode ser simplesmente chamado de trem.

CONCLUSÂO

Não quero que o leitor culto sinta-se ofendido pela maneira simplória e regionalista com que o tema foi tratado. É claro que em ambientes formais o mineirês torna-se deselegante e pode fazer um erudito sentir-se tão mal quanto o mineiro que ouve um gerúndio paulistanês. E a linguagem escrita deve ser gramaticalmente correta, mesmo por que seria muito complicado (senão impossível) definir regras para se transcrever o mineirês segundo a gramática normativa.

Meu objetivo aqui é esclarecer o mineirês e tornar mais acessível o seu entendimento para os demais falantes da Língua Portuguesa (pelo menos a brasileira).

Se o leitor, mesmo assim, considerar o mineirês um linguajar chulo, chegue lá em Minas qualquer dia desses, prove de uma refeição típica (pão-de-queijo com café preto de tira-gosto, galinhada de almoço, queijo minas com doce-de-leite de sobremesa e uma pinguinha para arrematar), ouça os causos de algum velho, volte para casa e tenha a coragem de continuar pensando como antes.

*bolacha . S.f. Trem que vem num pacote em que se lê: "Biscoito recheado sabor chocolate"

Informação

Como minha produção está bem aquém do que eu gostaria, aproveitarei o resgate inesperado de textos antigos d'A Patada e os postarei aqui a cada semana. Assim os leitores podem se destrair e o blog não fica jogado às traças até que eu escreva algo novo.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Saturno, um planeta burguês

"Erwachsen – was heißt das schon? Vernünftig – wer ist das schon?"
Peter Maffay

É chegado o inevitável: uma hora a gente se dá conta de que não resta tanto tempo assim.

Acabei de descobrir que os astrólogos chamam a isso "o retorno de Saturno". Li em algum lugar do que se tratava e realmente é o que tem acontecido comigo ultimamente: um período de reflexão e de tentar estabelecer algumas definições na vida.

Em verdade eu não boto muita fé na predestinação pelos astros (a mi me parece que son como las brujas). Penso que seja muito mais um efeito do tempo vivido e da consciência dos problemas existenciais. Ao fim da terceira década, já passamos por muitas experiências de diversos tipos, dolorosas em vários aspectos, principalmente a insegurança de se sentir sozinho e a proximidade da morte – se não da nossa, a do próximo. Isso acarreta uma necessidade de assentar, projetar o futuro próximo e real – não aquele futuro abstrato e estratosférico da pré-juventude – e colocar os planos em prática. O prazo para cumprir esses objetivos é curto.

Impressionante como o tempo induz a devaneios. Tanto no sentido de variável da função vida, quanto sendo ele o próprio assunto. Há passagens sensacionais da literatura que discutem a seu respeito, como em A Montanha Mágica. Temos a sensação de que o tempo corre mais rápido à medida que passa, pois cada vez menos novidades acontecem. A experiência adquirida nos torna progressivamente menos impressionáveis, pois já experimentamos muitas situações diferentes. E mesmo o que não vivemos torna-se um pouco previsível. Então aquela gigantesca disposição para conhecer coisas novas vai diminuindo; o que fica bom, assim parece, é aproveitar melhor o que acontece de normal todo dia, pois a velhice está cada vez mais próxima. Imagino que seja por isso que todo revolucionário cedo ou tarde acaba aceitando o modo de vida burguês – refiro-me aqui ao burguês, que tem como base a família e a propriedade, seja ele rico ou pobre, e não àquele burguesinho metido do colégio ou do trabalho.

O dilema atual, na verdade, é: tenho atualmente meu estilo de viver, independente sem dependentes, e gosto muito dele; no entanto, vejo quase todos os amigos "passando de fase", id est, contraindo matrimônio, construindo patrimônio e iniciando a prole. Consolidando a pergunta: há mesmo um procedimento correto e seguro para o complexo processo "vida"? Se eu não virar um pai de família agora vou necessariamente tornar-me um ancião solitário, infeliz e rabugento? Pretendo, sim, ter filhos; a idéia, porém, de me casar e abdicar de minha liberdade libertina, de tantas pequenas coisas de que gosto por um suposto bem maior, enfim, de tornar-me finalmente responsável, desanima-me muito. Não seria possível ser responsável de um jeito diferente dessa regra imposta em nossa cultura?

A tradição, ou seja, tudo o que vem sendo trazido através de gerações humanas, ensina que este é o caminho certo e a ordem natural das coisas. Já no livro didático de Biologia: "O ser humano nasce, cresce, reproduz e morre". Claro que o "morre" pode impor-se no lugar em que quiser dessa sequencia e acabar com todas as fases seguintes e que o "reproduz" muitas vezes vem antes do "crescer". Só que ali no meio a sociedade embutiu um "deve casar-se". Espero que isso não seja encarado simplesmente como imaturidade de um homem que não quer encarar o casamento - aquele ritual de passagem fantasiado de evento social, que todos identificam diretamente como passo para um futuro de sucesso - mas sim, de verdade: é mesmo preciso seguir esta fórmula que está aí, que algumas vezes funciona muito bem, outras se torna uma tragédia (em sentido literal ou metafórico), para se alcançar a felicidade? Seria felicidade nada mais que um conceito burguês fechado em seu próprio contexto e impossível em outros? Ou pode ser também um sentimento de satisfação sobre o que se faz em sua vida, na de seus semelhantes e em seu microcosmo e, portanto, acessível a outros modos de vida? Sou só imaturo ou, pelo contrário, estou tentando ver além?

Só dá pra saber vivendo. Daqui a alguns anos talvez eu conte uma história boa a respeito. E se Saturno, aquele planeta burguesinho, voltar aqui outra vez, eu arranco-lhe os anéis pra ele largar de ser metido a besta.